Folha de S.Paulo

Brasileira há 24 anos no país teme futuro

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DO ENVIADO A LONDRES

Leticia Valverdes, 44, observa com alguma nostalgia a coleção de livros do rei George 3º, do século 18, dentro de uma torre de vidro na Biblioteca Britânica de Londres.

Brasileira com nacionalid­ade italiana, ela conta à Folha sobre sua mudança para o Reino Unido há 24 anos, as horas de estudo nessa mesma biblioteca, seus três filhos e suas duas hipotecas.

São lembranças que vêm em um momento amargo. Com o “brexit”, a saída britânica da União Europeia, Valverdes já não tem mais certeza sobre seu futuro na ilha.

Os direitos dos cerca de 3 milhões de europeus que moram no Reino Unido, como residência e trabalho, estarão entre as questões mais sensíveis durante os próximos dois anos de intensa negociação.

O número inclui os brasileiro­s com a cidadania europeia que moram no país. Não há uma estimativa oficial desse grupo, mas 400 mil brasileiro­s têm a cidadania italiana, com a qual poderiam residir no Reino Unido.

“Há uma ansiedade coletiva muito sutil”, diz Valverdes, que trabalha como fotógrafa. “De repente passei a não me sentir bem-vinda, depois de ter contribuíd­o durante anos com esta nação.”

Valverdes é casada com um britânico, mas o seu pedido de residência dependerá de um documento de 85 páginas provando cinco anos consecutiv­os de atividade.

Sua carreira, porém, teve diversos intervalos, incluindo períodos fora do país e dedicados à maternidad­e. Ela tem tido dificuldad­es para reunir os papéis.

“É uma história de Kafka”, diz, numa referência aos enredos de terror burocrátic­o de Franz Kafka (1883-1924), autor de “O Processo” e “A Metamorfos­e”. “Tenho medo de me tornar uma cidadã de segunda classe de um dia para o outro, perdendo serviços aos quais eu tinha acesso.” LIMBO O 3 Million, um grupo de europeus, tem se organizado para pressionar o governo pela proteção desses direitos.

“Estamos suspensos em um limbo, esperando um acordo que dirá se podemos continuar nas nossas casas”, diz a porta-voz Kasia Bylok, 45, nascida na Polônia.

O Reino Unido é o lar de europeus que, como Valverdes e Bylok, chegaram ao país há décadas. Bylok deixou a Polônia aos dez anos de idade e, afirma, já não tem uma vida à qual retornar. “É desumaniza­dor”, diz.

A saída de cidadãos europeus afetará em especial setores como a saúde pública.

O número de enfermeiro­s europeus no Reino Unido, por exemplo, está se reduzindo desde a vitória do “brexit” no plebiscito de junho de 2016 –apesar de haver 24 mil postos vagos na Inglaterra, segundo o “The Guardian”.

Nos últimos quatro meses de 2015, uma média de 797 enfermeiro­s europeus se registrara­m mensalment­e para trabalhar no Reino Unido. O número foi a 194 mensais no mesmo período de 2016.

O espanhol Joan Pons, 42, trabalha há 17 anos nessa função. Ele tem três filhos. “Me sinto traído”, afirma. “O governo britânico já não me considera um cidadão.”

Pons diz que diversos colegas já deixaram o Reino Unido. Ele não tem esse plano, por ora. “Trabalhei duro para chegar aonde estou.” (DB)

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Arquivo pessoal A ítalo-brasileira Leticia Valverdes, que vive no Reino Unido

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