Londres sempre viveu às turras com bloco europeu
FOLHA
O Reino Unido nunca esteve inteiramente dentro da Europa, e isso não é consequência de determinismo geográfico, por ser ilhéu. Qualquer terráqueo que tenha acompanhado a relação britânica com a União Europeia sabe que o país sempre usou a ameaça de sair como argumento para impor o que queria nas negociações com a comunidade. Um dia, as ameaças se tornaram realidade.
Agora serão dois anos de conversa para definir novo statu quo. O sonho de muitos britânicos é a Suíça: o pequeno país tem isolamento natural similar (em vez do mar, montanhas) e sistema federativo modelo. Não é parte da UE, mas se beneficia de condição especial de comércio e fronteiras não oferecida a vizinhos como a Turquia.
A relação do Reino Unido com a comunidade europeia sempre foi marcada por ceticismo. Após lutar duas guerras no continente, os britânicos viram com desconfiança e ficaram fora do acordo do aço (1950), embrião da União Europeia. Londres também não aderiu quando os primeiros países firmaram o acordo do Mercado Comum Europeu (1957). Só assinou em 1973.
Eleita em 1979, Margaret Thatcher foi crítica da integração. Exigia a entrada de mais países, para diluir o peso das maiores potências, e não admitia moeda comum.
Em 1992, deu-se o maior trauma econômico com a Comunidade Europeia, quando especuladores entraram na bolsa apostando na desvalorização da libra. Regras europeias obrigavam os países a sustentar o valor das moedas. Londres investiu 3,4 bilhões de libras num dia, duelando com o banqueiro George Soros para manter a paridade de 2 a 1 para o dólar. Perdeu.
Naquela noite, o governo saiu do mecanismo de controle monetário: deixou a libra flutuar, e ela despencou. Preços de importados subiram, a inflação cresceu, o país viu a cara da crise sem a Europa correr em seu auxílio. A opinião pública sentiu de novo que sangrava a saúde nacional em benefício do continente.
No ano seguinte, após votação apertada, o país assinou o Tratado de Maastricht e aderiu à União Europeia, propriamente, mas manteve condições especiais, como a libra.
Mais recentemente, com a crise dos refugiados, as diferenças se manifestaram: a Alemanha foi favorável ao acolhimento, países mediterrâneos receberam o impacto, e o Reino Unido aproveitou a barreira natural (o mar) e bloqueou quase totalmente a entrada de imigrantes no país. Em seguida, veio a decisão de votar o “brexit”.
Como dizia o repórter americano David Halberstam, uma das maiores dificuldades de jornalistas é vender como novas notícias que são continuação de processos seculares. A saída anunciada agora é só a confirmação da velha ambiguidade dos britânicos com o que muitos no país chamam de “a Europa” (como se não fizessem parte dela). Ela iria acontecer, mesmo sem o nome “brexit”.