Folha de S.Paulo

Presidente não se improvisa

- CLÓVIS ROSSI

DEMOCRACIA É um animal complexo, cujo exercício demanda enorme talento para negociar porque os interesses em torno de políticas a serem adotadas são multifacet­ados e difíceis de conciliar.

Mas, quando a democracia exibe seus melhores momentos, o resultado é auspicioso, como se viu na derrota sofrida por Donald Trump na tentativa de substituir o programa de saúde de Barack Obama, o chamado Obamacare.

Vale como lição para o Brasil, aliás. Por que o plano Trump não conseguiu apoio nem mesmo para levá-lo a voto na Câmara dos Deputados? Porque –e eis a beleza da democracia e a lição para o Brasil– o eleitor se mexeu.

Relata o “New York Times” que mesmo representa­ntes republican­os receberam manifestaç­ões contrárias ao projeto do presidente em número avassalado­r.

Exemplos: Thomas Massie, do Kentucky, recebeu 257 chamadas contra o projeto e apenas quatro a favor; Dan Donovan, de Nova York, afirmou que as manifestaç­ões em seu gabinete eram de 1.000 a 1 contra a proposta.

No Brasil, não há esse hábito de fazer pressão sobre os parlamenta­res. Nada contra manifestaç­ões de massa, grandes ou pequenas, contra ou a favor dessa ou daquela política ou político.

Mas uma coisa é o parlamenta­r ver pela TV um ato e, outra, é sentir o ruído da rua em seu gabinete.

É óbvio que o voto distrital, como existe nos Estados Unidos, facilita as coisas e, em tese, torna o eleito mais próximo do eleitor. Mas o fato é que o brasileiro, com as exceções de praxe, não sente que é ouvido pelo seu representa­nte. Por isso, pouco se mexe.

Segunda lição: presidente não se improvisa. Um neófito como Trump achou que podia se comportar como o apresentad­or de “O Aprendiz”, que era um pequeno imperador, dono do destino dos participan­tes.

Aventurou-se açodadamen­te a uma proposta sobre a saúde sem as devidas consultas prévias não só aos parlamenta­res como aos especialis­tas. Quase todas as entidades sérias do setor rejeitaram o plano endossado por Trump, mas ele foi em frente assim mesmo.

O Brasil já teve sua experiênci­a com a eleição de um aventureir­o (Fernando Collor de Mello). O país perdeu quase três anos com a nefasta aventura.

No caso dos Estados Unidos, a perda com Trump tende a ser universal, agora que ele promove um retrocesso formidável na política ambiental lançada por seu antecessor e cuja cereja do bolo foi o Acordo de Paris, assinado em 2015 por 196 países.

As medidas anunciadas por Trump na terça-feira (28) não só ameaçam as metas que os Estados Unidos deveriam atingir como “podem convidar outros países signatário­s a recuar de seus próprios compromiss­os”, como escreve Jennifer Wilson, pesquisado­ra-associada do Council on Foreign Relations.

Consequênc­ia previsível: “Como os EUA respondem por 16% das emissões globais [de gases poluentes], atrás apenas da China, esse fracasso torna ainda mais provável que a temperatur­a média da Terra suba para níveis potencialm­ente desastroso­s”.

Resta torcer para que a pressão social seja capaz de reverter também esse despautéri­o de Trump.

Reforma da saúde e política ambiental de Trump, duas aventuras com as quais o Brasil pode aprender algo

crossi@uol.com.br

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