Folha de S.Paulo

Radicais sonham com devolução do Alasca

Ascensão do nacionalis­mo da era Putin estimula o sonho de reaver o território, vendido há 150 anos para os EUA

- IGOR GIELOW Século 17

Aliado do presidente apoia a ideia, que contudo não tem chance de prosperar nem anima o líder

As dificuldad­es de ocupar território­s distantes da Rússia, palcos de alguns dos protestos que abalaram o Kremlin no domingo (26), não impediram a ressurreiç­ão de um movimento popular entre nacionalis­tas mais radicais no país: aquele que pede a devolução do Alasca.

Há 150 anos, completado­s nesta quinta (30), o governo imperial de Moscou vendeu o território para a administra­ção norte-americana por US$ 7,2 milhões, valor hoje equivalent­e a US$ 123 milhões.

Foi uma pechincha, especialme­nte se considerad­a a riqueza em petróleo e gás de seu subsolo que seria descoberta no século seguinte.

Nada disso era conhecido em 1867, contudo. A Rússia estava enfraqueci­da pela guerra contra os britânicos na Crimeia (1853-56) e temia perder seu território na América do Norte sem compensaçõ­es adequadas.

Já os EUA queriam expandir as fronteiras após sua violenta guerra civil (1861-65).

O então Aliaska, nome russo retirado da designação nativa da região para a península junto às ilhas Aleutas, fornecia retaguarda contra tentativas britânicas ou francesas de recoloniza­ção da América do Norte.

Isso não impediu forte resistênci­a doméstica ao negócio, considerad­o pela imprensa e por congressis­tas como uma proverbial “fria”. O principal proponente do negócios nos EUA, o secretário de Estado William Seward, virou personagem clássico de cartuns satíricos nos quais o czar Alexandre 2º tirava vantagens da venda de um “pedaço de terra gelada”. TEORIA CONSPIRATÓ­RIA Isso é o que a historiogr­afia clássica diz. Para alguns nacionalis­tas russos, o que ocorreu foi um golpe palaciano dado pelo irmão mais novo do czar, o grão-duque Konstantin, que teria então embolsado o pagamento com alguns comparsas.

A tese era popular na União Soviética, que buscava demonizar todos os aspectos do czarismo que veio a substituir em 1917, mas caiu em desuso. Mas a ascensão do nacionalis­mo da era de Vladimir Putin no poder, a partir de 2000, a reavivou.

Ela encontra eco na cultura popular. A banda de rock Lyube, conhecida por seus hinos às virtudes nacionais russas, lançou uma música pedindo o “retorno do Alasca”.

Não existe, contudo, muita produção acadêmica a tentar sustentar a ideia. Um livro foi lançado em 2014 alinhavand­o os pontos da teoria, “A traição e o roubo do Alasca”, do historiado­r Ivan Mironov.

Lá estão a ideia da conspiraçã­o palaciana e argumentos contrários à ideia de que a Rússia estava fraca: ela tinha ajudado o governo de Abraham Lincoln durante a guerra civil, e os gastos no Alasca eram exclusivos dos investidor­es da Companhia Russo-Americana.

A empresa administra­va a região e explorava o comércio de peles desde 1799, tendo 2.500 russos e 8.000 locais sob seu comando —havia também cerca de 50 mil nativos no território.

Para o historiado­r, os descendent­es de acionistas, que não ganharam nada com a venda, deveriam buscar reparação judicial.

Mironov é um nacionalis- ta amalucado que ficou dois anos preso por tentar matar o pai do programa de privatizaç­ões pós-soviéticas, Anatoli Tchubais, em 2005.

Mas um leitor em especial comprou sua ideia e até escreveu o prefácio do livro: Dmitri Rogozin. Líder de um partido nacionalis­ta, o Rodina, ele foi alçado por Putin ao poderoso cargo de vice-premiê responsáve­l pela indústria de defesa do país.

É um radical, mas não um qualquer, com acesso ao centro do poder. O que o chefe dele acha da ideia? Há três anos, Putin ouviu uma piada durante uma entrevista coletiva sobre o Alasca ser um “ice cream”, palavra inglesa para sorvete que, numa mistura fonética com o russo, soa como “Crimeia gelada”. CRONOLOGIA Primeiras expedições russas Estabeleci­mento da Companhia RussoAmeri­cana

Putin acabara de anexar a Crimeia, península na Ucrânia, na esteira do movimento que derrubou o governo que o apoiava em Kiev.

Na entrevista, o presidente apenas riu sobre a insinuação de invadir o Alasca e disse que já era muito difícil subsidiar as regiões distantes da Rússia. “É muito frio lá.”

A Rússia tem outras questões territoria­is abertas, como a disputa por ilhas com o Japão. E Putin está efetivamen­te reconstrui­ndo a zona de influência da antiga União Soviética.

Mas daí a imaginar que ele buscaria reaver o maior Estado do país mais poderoso do mundo há uma distância bem maior do que os 82 quilômetro­s do estreito de Bering, que a separa da antiga colônia. Estabeleci­mento da América Russa Venda para os EUA Território vira Estado Descoberta de petróleo Acidente com petroleiro Exxon Valdez

 ??  ??
 ?? Reprodução ?? Gravura mostra a assinatura da compra, com o secretário William Seward ao centro
Reprodução Gravura mostra a assinatura da compra, com o secretário William Seward ao centro

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil