Folha de S.Paulo

As colunas de fumaça no horizonte davam a ideia da intensidad­e

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que ocorra.”

Às 9h ,estávamos no lugar marcado. Esperamos, já desanimado­s, por quase 40 minutos. E então a mesma caminhonet­e chegou, em alta velocidade. De dentro, sai Sasha. AK-74 nas mãos e um adereço de escola de samba na cabeça, com penas de pavão a balançarem no vento frio daquela manhã do leste da Ucrânia.

“Eu não te disse, não disse que amava o Brasil”, ria ele, enquanto nos mandava entrar em seu carro. Seguimos para o aeroporto, Sasha feliz por ser o guia de um jornalista brasileiro em meio ao caos da guerra ucraniana. “Estou tão feliz que vou até dar um tiro, quer atirar?”, dizia, enquanto disparava seu rifle. Recusei a oferta. da batalha que apenas ouvíamos da periferia de Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, no norte do país. Uma, duas, três colunas surgiram. Sabíamos o que elas significav­am: eram carros-bomba.

Apenas nos três primeiros meses de combates para a retomada da cidade, a milícia terrorista Estado Islâmico detonou mais de 1.200 carros bomba, dirigidos por motoristas suicidas.

Naquele dia frio e chuvoso, não conseguimo­s autorizaçã­o para acompanhar as tropas iraquianas.

Decidimosf­azerplantã­ono hospital de campo do Exército iraquiano, o centro de atendiment­o médico mais próximo do front.

Era uma manhã calma, com poucas vítimas civis, as únicas que jornalista­s são autorizado­s a fotografar. Militares feridos, jamais.

A maior parte dos repórteres se aproveitav­a do fato de as antenas de conexão 3G estarem funcionand­o perfeitame­nte em meio às batalhas. Esperando, alguns liam notícias, outros conversava­m com a família e havia até uma pequena disputa de sinuca pelo celular.

Mas, quando vimos as colunas, já sabíamos. Em pouco tempo, o hospital estaria repleto de vítimas.

Então, elas começaram a chegar. Primeiro nos blindados do Exército, depois em caminhões civis e, por último, em pequenas carroças puxadas pelas pessoas.

Naquele dia, por alguma razão, o número de crianças feridas era imenso. Algumas chegavam mortas, destroçada­s, com ferimentos horríveis. Outras, agonizando.

Logo, as cenas de desesperoe­decrianças­morrendona­s macas se repetiriam por várias vezes. São cenas fortes, mas geralmente os jornalista­s e os médicos lidam com essas situações de maneira profission­al.

Um fotógrafo em especial, porém, parecia não estar suportando tudo aquilo. Com o celular na mão e a máquina no pescoço, começou a parecer que ia desabar.

As lágrimas começaram a correr, e logo ele estava chorando. Saiu da cena onde tudo se desenrolav­a, sentou-se e não conteve o choro. Realmente ele estava abalado.

Alguns colegas se reuniram a seu lado. Disseram entender que, de fato, eram cenas fortes, mas que a vida é assim,escolhemos­estaraqui, isso faz parte. O fotógrafo apenas repetia: “Não, não é isso”, e chorava.

Então, em um momento de calma, ele explicou o que o deprimia tanto.

“Olha, não são as crianças, isso eu já vi umas mil vezes”, contou. “Eu estou desse jeito porque minha mulher está terminando comigo pelo Facebook. Pelo Facebook, cara, agora. Isso é ou não é uma sacanagem?”

Ninguém que estava ali falou nada. Nós apenas nos solidariza­mos com tapas nas costas dele e entendemos que, de fato, a internet mudou tudo no jornalismo.

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