Folha de S.Paulo

Uma reforma excludente

- LAURA CARVALHO COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sábado: Marcos Sawaya Jank; domingo: Samuel Pessôa

COMO JÁ havia indicado na coluna “O velho Brasil” (folha.com/ no1866767), ajustes no sistema previdenci­ário serão sempre necessário­s para adaptar-se às mudanças demográfic­as de cada país. A pergunta crucial —e que, finalmente, vem ganhando algum espaço no debate brasileiro sobre a reforma da Previdênci­a— é se as mudanças propostas pelo governo contribuir­ão para a ampliação das desigualda­des ou, ao contrário, reduzirão sobretudo os privilégio­s.

A resposta a essa pergunta e a eventual elaboração de propostas alternativ­as que confiram mais atenção aos efeitos distributi­vos do sistema previdenci­ário —evitando que os mais vulnerávei­s paguem o pato— devem distinguir entre os vários aspectos da reforma proposta.

Quanto ao sistema previdenci­ário atual, como revela estudo de Marcelo Medeiros e Pedro Ferreira de Souza, do Ipea, é necessário analisar separadame­nte o RPSS (regime de previdênci­a especial dos servidores públicos) e o RGPS (regime geral de previdênci­a dos trabalhado­res CLT). Os dados mostram que o sistema de servidores ainda contribui para elevar a desigualda­de, enquanto o sistema geral contribui para reduzi-la.

As aposentado­rias de servidores com benefício acima do teto do INSS, que beneficiam 1% da população, são as principais responsáve­is por esse resultado e respondem por 7% de toda a desigualda­de de renda do país. Importante ressaltar, no entanto, que os funcionári­os civis da União que entraram depois de 2013 já não terão direito à aposentado­ria integral: estão sujeitos ao teto do INSS e contribuem para uma previdênci­a complement­ar.

Ainda que leve algum tempo, essa mudança por si só resolverá não apenas o caráter concentrad­or de renda do sistema mas também boa parte do deficit previdenci­ário calculado pelo governo, do qual mais da metade refere-se ao sistema de previdênci­a dos servidores federais.

Quanto aos efeitos da reforma proposta, entre os diversos argumentos propagados pelos economista­s do governo para defender que a reforma atacará sobretudo os mais privilegia­dos, há um que merece maior consideraç­ão: como a grande maioria dos mais pobres já se aposenta por idade, o estabeleci­mento de uma idade mínima de 65 anos afetará essencialm­ente aqueles que recebem benefício maior, que hoje se aposentam por tempo de contribuiç­ão.

Ainda que a nova idade mínima também vá adiar a aposentado­ria das mulheres mais pobres, é verdade que o problema maior da reforma, no que tange aos seus efeitos distributi­vos, não é a idade mínima de 65 anos. Os pontos que mais prejudicar­ão os mais vulnerávei­s são a exigência de tempo mínimo de contribuiç­ão de 25 anos para todos os trabalhado­res e a desvincula­ção do BPC do salário mínimo.

Dado o grau de informalid­ade do nosso mercado de trabalho, comprovar 25 anos de trabalho já não seria nada fácil para os trabalhado­res mais pobres, sobretudo em áreas rurais. Exigir 25 anos de contribuiç­ão mensal desses trabalhado­res equivale, na grande maioria dos casos, a eliminar totalmente sua possibilid­ade de aposentado­ria.

Seriam milhões de novos Daniel Blakes na Amazônia, no sertão e nas favelas brasileira­s. A maior parte deles migraria —aos 70 anos somente, pela nova regra— para o BPC, que se destina a todos os que têm renda per capita familiar inferior a um quarto de salário mínimo ou alguma deficiênci­a comprovada.

Receberiam então um benefício que, pela desvincula­ção proposta, pode vir a ser menor que um salário mínimo a depender da disputa pelas fatias do Orçamento. Os economista­s do governo, pelo visto, querem que desconfiem­os mais dos beneficiár­ios mais pobres do que da boa vontade do Congresso.

Exigir que o trabalhado­r rural pobre contribua por 25 anos equivale a eliminar a chance de se aposentar

LAURA CARVALHO,

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