Folha de S.Paulo

O escritor e o purista

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

APORTUGUES­ADAS OU não, empregadas fora de contexto ou não, mão na roda ou não, exibicioni­stas ou não, as palavras estrangeir­as formam uma nuvem em torno da nossa língua. Realizou?

Talvez a maioria viva bem com isso, acreditand­o que, para usar o modismo deste outono, “língua é sobre dar o recado” e o resto é frescura. Também não falta quem se angustie.

Será que existe um limite razoável para as importaçõe­s? Se a língua está viva —e se mexendo!—, só nos resta relaxar enquanto as fábricas viram plantas?

Relaxar costuma ser bom conselho. Se vingar a acepção que o inglês “plant” fez crescer no vocábulo “planta” como um galho enxertado —bem, perdeu, playboy. O conjunto dos falantes é soberano. Mas essa história não acaba aqui.

Na distinção famosa de Ferdinand de Saussure, pai da linguístic­a, uma coisa é língua e outra é fala. A primeira, social, precede e ultrapassa cada um de nós. A fala, sim, é a casa do falante, onde ele é rei.

A fala é o recorte pessoal feito numa tela imensa de bordas indistinta­s. É um parque de diversões e também o domínio das nossas decisões éticas, estéticas e afetivas.

Se a “planta” industrial lhe cai mal, por parecer uma tradução preguiçosa que denota servilismo cultural e penúria educaciona­l, não admita que ninguém lhe negue esse direito.

Sim, a comédia involuntár­ia produzida pelos puristas de cem anos atrás ensina que argumentos do gênero costumam perder. Isso não desautoriz­a o olhar crítico, a ponderação, o humor —pelo contrário! O embate entre Machado de Assis e Castro Lopes é a melhor ilustração da diferença entre o crítico e o purista.

Machado e quem? Hoje ninguém fala dele, mas Antônio de Castro Lopes (1827-1901) foi o príncipe dos puristas. Médico e latinista, ganhou fama ao propor a substituiç­ão de termos franceses por neologismo­s cultos que ele mesmo criava.

Uma vez que “chauffeur” (sem aportugues­amento na época) era francês e “motorista” dormia no limbo dos neologismo­s futuros, o autor do livro “Neologismo­s Indispensá­veis e Barbarismo­s Dispensáve­is” lançou a candidatur­a de “cinesíforo”.

“Reclame” (anúncio publicitár­io) devia dar lugar a “preconício”, “pince-nez” a “nasóculos”, “abat-jour” a “lucivelo”, “avalanche” a “runimol” etc. Nada disso pegou.

Bom, quase nada. Só faremos justiça a Castro Lopes se lhe dermos crédito pela criação da palavra “cardápio” em resposta a “menu”. Trata-se de um êxito impression­ante. Seu “convescote”, substituto de “pique-nique”, é menos usado, mas também está vivo. Nem tudo é fiasco no reino do purismo.

Machado de Assis dedicou algumas crônicas à cruzada quixotesca de Castro Lopes. Tratava o homem com ironia, chamando-o de “nossa Academia Francesa”. A rigidez do latinista contrasta comicament­e com a postura nuançada e cheia de humor do maior escritor brasileiro.

“Nunca comi ‘croquettes’, por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei ‘filet de boeuf’, é certo, mas com restrição mental de estar comendo ‘lombo de vaca’”, escreveu Machado em crônica de 7 de março de 1889.

Ambos revelam estranhame­nto diante das palavras estrangeir­as. Um as rejeita em bloco, o outro ri delas e de sua própria confusão. Entre o purista e o escritor, meu lado está escolhido desde sempre.

Machado de Assis ensinou a latinista que abuso de palavras estrangeir­as se combate com humor

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