Folha de S.Paulo

Mulher inventa sistema, e marido escreve livro só com piscar dos olhos

Portador de doença neurológic­a indica as letras em alfabeto anotado em uma folha de papel; ele já planeja nova publicação

- BRUNO MESTRINELL­I

FOLHA,

Tomar sorvete, cuidar de orquídeas, pescar, dar um beijo no filho. Situações rotineiras antes vividas por Dorivaldo Aparecido Fracaroli, 56, de Boraceia (a 316 km de São Paulo), se tornaram impossívei­s ao adoecer.

Portador de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófic­a), doença neurológic­a que atrofia progressiv­amente os músculos e leva à perda dos movimentos do corpo, ele usa cadeira de rodas e se comunica só com o piscar dos olhos. Respira artificial­mente, e o alimento é aplicado no estômago.

Os limites físicos não impediram Dorivaldo de escrever um livro. “Ipê ‘DO’ Amarelo”, de 112 páginas, foi feito em parceria com a fonoaudiól­oga Maria José de Oliveira, 52, que transporta­va as piscadas dele para o papel.

A história é semelhante à contada no filme “O Escafandro e a Borboleta”. No Brasil, uma tese de doutorado já foi escrita do mesmo modo.

O livro começou a ser escrito em 2014 e traz memórias do autor, desde a sua infância, na zona rural, além de como foi a descoberta da ELA, a evolução da doença e como foi o processo para aceitá-la.

Dorivaldo é famoso em Boraceia, cidade de 4.675 habitantes, na região central do Estado. Além de já ter sido dono de sorveteria, de bar e funcionári­o na Câmara, é o responsáve­l pelo desenho da bandeira do município.

O sistema de comunicaçã­o dele com o mundo foi criado por sua mulher, a professora Valéria Maria da Silva Fracaroli, 52, quando ele ainda estava na UTI de um hospital em São Paulo, em 2012.

O marido teve complicaçõ­es em uma gastrostom­ia (para receber alimentaçã­o já no estômago). Em seguida, também foi submetido a uma traqueosto­mia (cirurgia para respiração mecânica) e perdeu a fala.

“Eu não sabia se ele tinha dor, o que ele queria falar. Era um momento de desespero”, lembra Valéria. Em seguida, em uma folha, escreveu o alfabeto, dividindo em linhas.

As letras “A” até a “G” ficam na primeira linha. E assim por diante. Ela pergunta se a letra está na primeira linha, na segunda. Dorivaldo diz sim com uma piscada. Não, com duas. Quando quer colocar ponto ou vírgula, levanta as sobrancelh­as. “A primeira frase que ele formulou foi perguntar se podia tomar banho”, diz a mulher. TEIMOSIA Os sintomas começaram a aparecer em 2008, com dores nos ombros. Em 2009, veio o diagnóstic­o.

Na época viajava todos os dias para trabalhar. “Levou vários tombos e não me contava. Só ficava sabendo quando ele voltava machucado”, conta a mulher.

Enquanto Valéria lembrava do passado, o marido piscava para confirmar ou corrigir as frases dela. E ria ao ser chamado de teimoso.

Em janeiro de 2013, Dorivaldo retornou a Boraceia. A fonoaudiól­oga Maria José Oliveira passou a visitá-lo para consultas. “Ele chegou muito triste, e então eu sugeri que ele escrevesse um livro de qualquer assunto.”

Letra a letra, tudo era escrito em uma lousa branca. Quando estava completa, o conteúdo era copiado em um livro, à mão. Inicialmen­te a própria mulher recolhia os depoimento­s. Depois, a tarefa passou para técnicas de enfermagem. E, por fim, a fonoaudiól­oga Maria José.

Dorivaldo mantém-se ativo na administra­ção da casa. Dá palpites, faz contas e aconselha o filho Tadeu, 22. A locomoção dele por Boraceia é por cadeira de rodas, empurrado por familiares e técnicas de enfermagem.

A venda do livro servirá para comprar um computador capaz de reconhecer o movimento dos olhos dele. Hoje, Dorivaldo tem página em rede social, com a ajuda de amigos. Um segundo livro já está sendo preparado, sobre a história da cidade.

Dorivaldo quis também falar na entrevista à Folha, no sábado (25), em sua casa.

“A mensagem que eu quero deixar é para que as pessoas nunca desistam, que todos podem fazer alguma coisa para se ocupar”, ditou letra a letra à mulher.

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Denise Guimarães/Folhapress Dorivaldo Fracaroli, 56, portador de doença neurológic­a, e sua mulher, Valéria Maria, 52

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