Secretário diz que cardiologia é muito precária
Naquele domingo, Maria Francisca do Nascimento, 68, acordou com enjoo e dor no peito. No hospital público de Estância, a 66 km de Aracaju (SE), recebeu soro e, três horas depois, foi liberada.
Na madrugada de quinta (23/2), o desconforto voltou acompanhado de dificuldade de respirar. Às 6h, foi levada para o hospital, e recebeu soro o dia todo. No fim da tarde, uma médica decidiu pedir um eletrocardiograma, que diagnosticou o infarto.
Mas o hospital, assim como outros no interior e na capital, não tem estrutura para tratar infartados, nem mesmo usa trombolítico, medicação que pode desobstruir a artéria, ajudando a estabilizar o doente até a chegada a um centro especializado.
Só às 21h, 15 horas após a internação, é que Maria foi levada ao Hospital Cirurgia, em Aracaju, o único que atende pacientes infartados do SUS no Estado. No cateterismo, ela piorou, desenvolveu insuficiência cardíaca e, depois, falência renal. No dia 19 de março, a aposentada morreu.
“Dói saber que minha mãe poderia ter sobrevivido se tivesse tido um atendimento mais rápido. Os médicos acreditam que, pelos sintomas, ela possa ter tido o primeiro infarto no domingo, mas ninguém no hospital percebeu”, lamenta o filho Marcelo, 39.
O diagnóstico tardio e a longa espera para conseguir tratamento do infarto, uma das principais causas de morte do brasileiro, está fazendo com que a taxa de mortalidade de pacientes do SUS de Sergipe seja o dobro em relação aos que têm planos de saúde e são tratados em hospitais privados (10,3% contra 4,9%).
A conclusão vem de estudo inédito de um time de 36 pesquisadores, a maior parte da Universidade Federal de Sergipe, que acompanhou por um ano e quatro meses 460 vítimas de infarto atendidas nos hospitais especializados em cardiologia do Estado (um público e três privados).
O número representa pouco menos de um quarto dos prováveis casos de infarto previstos no período para o Estado. Muitos pacientes morrem antes de chegar a uma unidade especializada.
O trabalho, financiado pelo CNPq e apresentado em congresso americano de cardiologia há duas semanas, demonstra cientificamente várias disparidades entre os dois sistemas de saúde. Para os pesquisadores, ele funciona como um “laboratório” do que ocorre no resto do país.
A pesquisa tem um acrônimo emblemático: Victim (ViaCrúcis para o Tratamento do Infarto do Miocárdio).
“O paciente SUS tem experimentado uma verdadeira via-crúcis para ter acesso ao sistema de saúde e isso o torna uma vítima da ineficiência desse sistema”, diz o cardiologista José Augusto Barreto Filho, professor da Universidade Federal de Sergipe e coordenador do estudo.
A iniquidade já fica flagrante na distribuição dos equipamentos de saúde: 84% dos sergipanos são dependentes do SUS, mas só contam com um hospital que faz atendimentos cardiológicos. Ainda assim, a unidade ameaça suspender atendimento por atrasos nas verbas de custeio. Os usuários de planos (16%), têm três hospitais privados.
No SUS, apenas 47,5% dos pacientes chegaram em tempo hábil para tratamento do infarto, que deveria ser inferior a 12 horas. No privado, esse número foi de 80,5%.
Segundo Barreto Filho, quanto mais cedo a artéria obstruída for aberta (por medicação ou stent), maior será a preservação do músculo cardíaco e menores serão as taxas de mortalidade e de insuficiência cardíaca.
“A maioria dos pacientes do SUS está chegando fora dessa janela por falta de acesso a um cuidado adequado. Isso é mortal”, diz. Com 20 a 30 minutos de oclusão, há morte do músculo cardíaco.
O tipo de infarto estudado (supra ST) é caracterizado por obstrução total da coronária.
Outra falha apontada no estudo: só 42,5% dos pacientes do SUS foram tratados com reperfusão (terapia que restaura o fluxo para o músculo cardíaco ameaçado pela oclusão da artéria). No setor privado, a taxa foi de 73,1%. DIAGNÓSTICO São vários os entraves para o acesso ao hospital especializado, a começar pela chegada à unidade de saúde. “Poucos conseguem ambulância. A maioria chega na garupa da moto, de bicicleta ou a pé mes- Pacientes do SUS Pacientes de hospitais privados Chegaram em tempo hábil para tratamento do infarto Passaram antes por alguma outra instituição porque eles não têm acesso direto ao hospital especializado Tempo médio em horas para se chegar ao hospital de referência Foram tratados com reperfusão (tratamento ideal neste tipo de infarto) mo. Alguns até deixam o cachorro na porta do hospital”, diz Jeferson Oliveira, pesquisador que ajudou na coleta dos dados no interior do Estado.
Há barreiras também no diagnóstico. O eletrocardiograma é feito nos hospitais regionais, mas quem dá o laudo é uma equipe de telemedicina na Bahia. O resultado costuma ser rápido, porém, nem sempre há alguém à espera do laudo na outra ponta.
“É comum o resultado chegar e demorar para ser visto [no computador]. O paciente fica lá no corredor, infartado, sem assistência”, diz o cardiologista Fabio Serra Silveira, coordenador da unidade vascular do Hospital Cirurgia. usam hospitais particulares e têm
especializados
Segundo ele, o ideal seria que, ao sair o laudo, o paciente já recebesse trombolíticos. Só 3,7% dos pacientes receberam a medicação no SUS.
“O remédio reperfunde [abre as artérias] em 60% dos casos, mas deve ser feito nas primeiras três horas. Tempo é músculo”, diz o cardiologista José Eduardo Ferreira.
DE SÃO PAULO
O secretário municipal da Saúde de Aracaju, André Sotero, reconhece que a situação da área da cardiologia no município é de “grande precariedade. “Nada pode nem deve ser negado”, disse em mensagem de texto.
Ele afirma que encontrou uma secretaria totalmente sem estrutura e repleta de dívidas. “Tinha hospital que não recebia desde maio.”
Segundo Sotero, a prefeitura tem honrado todos os compromissos desde o início da gestão. “Já pagamos a inúmeros fornecedores. Quem um dia me suceder, receberá uma secretaria muito melhor do que a encontrada.”
Sobre o estudo VICTIM, ele disse que vai analisar todas as falhas de assistência apontadas para ver o que é possível corrigir prontamente.
Procurado desde sexta (24), o secretário de Estado da Saúde do Sergipe, José Almeida Lima, não respondeu.
Por solicitação do assessor de imprensa, Caio Guimarães, a Folha enviou na sexta os principais resultados do estudo e solicitou que o secretário comentasse as disparidades do atendimento no SUS.
A reportagem também questionou por que só há um hospital referência do Estado para tratar infarto de pacientes do SUS e como o governo pretende solucionar a crise do setor, já que esse hospital ameaça parar o atendimento por falta de pagamento.
Uma ação no Ministério Público diz que há mais de R$ 40 milhões de atraso de pagamentos por parte do Estado e da prefeitura. O secretário municipal negou o atraso.
A reportagem perguntou ainda a razão de os hospitais regionais e ambulâncias do Samu de Sergipe não utilizarem trombolíticos para estabilizar os pacientes infartados até a chegada à capital.
Também questionou como o Estado pretende solucionar falhas na rede assistencial, como a falta de ambulância para transportar doentes até Aracaju, e o que vai fazer para evitar que os pacientes continuem morrendo por falta de cuidado adequado. (CC)