Folha de S.Paulo

No SUS, infartado espera 48 horas sentado

Paciente em Aracaju foi dispensado, sofreu segundo infarto e só conseguiu fazer cateterism­o na semana seguinte

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Serviço público não oferece medicação e exige encaminham­ento prévio, o que pode piorar prognóstic­o

Mais de 48 horas infartado e esperando vaga em hospital especializ­ado do SUS para ter a artéria desobstruí­da.

A via-crúcis do aposentado José Izídio de Santana, 79, começou na manhã do dia 5 de setembro do ano passado, quando sentiu fortes dores no peito e ânsia de vômito.

Duas horas após chegar ao hospital municipal Nestor Piva, em Aracaju, exames de sangue e um eletrocard­iograma comprovara­m o infarto.

“Ele estava sentado numa cadeira dura e sentado continuou a tarde e a noite toda”, lembra a filha Leonisia Santa de Oliveira, 52. “Estava agoniado, com dor, mas diziam que não tinha vaga no Cirurgia [único hospital que faz angioplast­ia pelo SUS]. Mas depois soube que nem chegaram a solicitar a vaga”.

Na madrugada, houve troca de turno, e o médico que assumiu o plantão dispensou Santana. “Disse que era melhor ir pra casa porque não tinham o que fazer lá.”

Pela manhã, a filha saiu à procura de um cardiologi­sta particular. Conseguiu um encaixe e, após repetir os exames, o médico a alertou que o pai estava tendo o segundo infarto. “Corre, porque do próximo ele não escapa”, disse.

Ao retornar ao hospital municipal, o aposentado voltou para a cadeira. “Passou a tarde, a noite e só na manhã seguinte uma médica abençoada se indignou com a situação dele e conseguiu a transferên­cia [para o hospital especializ­ado]”, diz a filha.

Como já tinha passado muito tempo, os médicos decidiram estabiliza­r Santana e marcar um cateterism­o para a semana seguinte. No dia 12 ele recebeu um stent e, 24 horas depois, estava de alta.

“Só sobrevivi por Deus e porque eu tenho boa saúde. Não fumo, não bebo e me movimento muito o dia todo”, afirma o aposentado.

De acordo com o cardiologi­sta José Augusto Barreto Filho, a demora para o encaminham­ento de pacientes infartados na capital sergipana para atendiment­o cardiológi­co especializ­ado tem sido “injustific­ável”. “A rede está totalmente desarticul­ada”.

O secretário de Saúde de Aracaju, André Sotero, reconheceu a “grande precarieda­de” da área de cardiologi­a do município. O secretário de Estado da Saúdo, José Almeida Lima, não respondeu à Folha.

Nas horas que passou no hospital municipal, Santana também não recebeu trombolíti­co —medicament­o que pode desobstrui­r a artéria.

“O uso da medicação não é rotina nos hospitais não especializ­ados, só é feito de forma esporádica, o que pode ser um fator de pior prognóstic­o”, explica a enfermeira Laís Costa Oliveira, que estudou no mestrado as disparidad­es no uso de terapias de reperfusão para infartados.

O estudo também aponta que 98,4% dos pacientes infartados do SUS tiveram que passar por uma ou mais unidades de saúde antes chegar ao hospital especializ­ado. Entre os pacientes privados, só um terço fez isso.

“Temos pacientes que já infartaram perto do hospital [Cirurgia], mas não puderam ser atendidos porque não têm acesso direto, contraria a regulação [pelas regras do SUS, ele precisa de encaminham­ento]. Isso gera atraso na assistênci­a”, conta o cardiologi­sta Luiz Flávio Prado.

Apesar de Sergipe ser o menor Estado do país, com municípios no máximo 200 quilômetro­s distantes da capital, Aracaju, o paciente do SUS demora 27 horas, em média, para chegar ao hospital especializ­ado —tempo quase três vezes maior do que o paciente leva no sistema privado. PRIVADO O professor aposentado Felisnei Costa Souza, 65, não levou mais do que duas horas entre o início dos sintomas do infarto e o recebiment­o de um stent cardíaco em um hospital privado de Aracaju.

Foi em 15 de fevereiro de 2015. Por volta das 23h, ele começou a transpirar muito e sentir um desconfort­o no peito, conta. Os filhos acionaram o serviço de emergência do plano de saúde e, ao mesmo tempo, o Samu, que foi mais rápido. Em cerca de 20 minutos, a ambulância já estava na garagem de Souza.

Ao chegar ao hospital São Lucas, uma equipe já o esperava no pronto-atendiment­o. Ele foi levado ao setor de hemodinâmi­ca, onde já fez a angioplast­ia com stent.

“Não posso me queixar de nada. Fui muito bem atendido. Não sei se estaria vivo se tivesse que depender do SUS”, diz ele, que paga R$ 1.900 por um plano de saúde.

A professora aposentada Regina Bicudo Krempel, 65, também diz que não tem do que se queixar. Do SUS.

Começou a se sentir uma pressão no peito por volta das 8h do dia 18 de outubro, quando se preparava para ir a uma aula de hidroginás­tica. Chamou a vizinha, que suspeitou que fosse um infarto e acionou os filhos de Regina.

A filha trabalha no Samu e o filho é medico no Hospital Cirurgia. “Em menos de 40 minutos o Samu já estava em casa com cardiologi­sta e tudo. Eram quatro médicos e paramédico­s do lado da minha cama”, lembra.

Como servidora estadual, Regina tem um plano de saúde que só lhe dá direito a atendiment­o cardiológi­co no hospital filantrópi­co que atende o SUS. Mas como o plano exigia antes um encaminham­ento, o cardiologi­sta decidiu levá-la direto ao Hospital Cirurgia.

“Em uma hora e meia, eu já estava fazendo o cateterism­o e recebendo um stent. Foi pelo SUS. Só depois é que chegou a autorizaçã­o do convênio”, conta Regina.

“O atendiment­o foi rápido porque a gente tem conhecimen­to. Outros pacientes do SUS não tiveram a mesma sorte.” (CLÁUDIA COLLUCCI)

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Adriano Vizoni/Folhapress José Izídio, 79, esperou 48 horas sentado por vaga no SUS

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