Folha de S.Paulo

A carne negra ainda é explorada no mercado

Travestida de reparação, inclusão da questão racial no mundo da arte esbarra na apropriaçã­o cultural e no fetichismo

- SILAS MARTÍ

Quando a Bienal do Whitney abriu as portas há duas semanas, em Nova York, um grupo de ativistas bloqueou a visão de um dos quadros. Era uma pintura da artista branca Dana Schutz representa­ndo, em chave expression­ista, o rosto inchado e mutilado do negro Emmett Till como visto em seu caixão.

Till tinha 14 anos quando foi linchado, seu corpo jogado no rio Mississipp­i, no sul ainda segregado dos Estados Unidos, em agosto de 1955. Suspeitava­m que ele tivesse flertado com uma garota branca. Um júri também todo branco absolveu seus algozes, mas a história que veio depois, em especial seus ecos nas artes, tem mais matizes.

No Whitney, militantes que exigiam a retirada e destruição do quadro de Schutz usavam camisetas com a frase “espetáculo da morte negra”. Enquanto isso a negritude, desfigurad­a ou erotizada, vem se tornando um espetáculo controvers­o no cenário artístico da última década.

Brasil e Estados Unidos, igualados ao menos no passado escravocra­ta, parecem tentar exorcizar pela arte um passado imperdoáve­l de brutalidad­e e injustiça contra os povos negros, um histórico, no caso, que se arrasta em muitos aspectos até o presente.

Na falsa democracia racial que vigora por essas bandas, artistas antes vistos como brancos, pardos ou mestiços vêm se declarando só negros, contrarian­do a narrativa de uma miscigenaç­ão que tudo neutraliza —reflexo talvez da pressão de um mercado que descobriu uma moda perversa e passou a reduzir seus artistas a cotas de cor.

Obras que antes contornava­m a pele agora parecem se ancorar nela.

Surfando essa onda, o Masp destaca em sua grande galeria de pinturas o retrato de um negro açoitado feito por Cézanne no auge da luta abolicioni­sta. O museu, aliás, planeja um ciclo de exposições sobre o legado da escravidão, começando com uma retrospect­iva do grafiteiro americano Jean-Michel Basquiat, e acaba de comprar para seu acervo duas telas que tocam na questão racial.

Esses quadros, do carioca Heitor dos Prazeres e do uruguaio Pedro Figari, retratam personagen­s negros; o primeiro mostra um dândi dos trópicos batizado “O Artista”, e o segundo flagra uma roda de candombe, versão do candomblé que fincou raízes em muitos território­s de antiga colonizaçã­o espanhola.

No Brasil, mesmo no círculo restrito dos vernissage­s, fenômenos recentes ilustram essa tendência. Paulo Nazareth, que se diz branco, negro e índio, é incensado pela crítica como o maior nome negro das artes do país.

Entre colecionad­ores, ele virou uma coqueluche incontorná­vel com seus autorretra­tos fingindo ser um andarilho a desbravar as Américas.

Jonathas de Andrade, dos mais brilhantes artistas de sua geração, dá outro nó na questão, erotizando o corpo mestiço ao mesmo tempo em que denuncia sua exploração numa economia racista.

Na próxima Bienal de Veneza, a primeira após uma edição que teve recorde de artistas africanos, o negro Ayrson Heráclito estará na mostra principal com um trabalho que alude aos horrores do tráfico de escravos para o Brasil.

O mundo branquíssi­mo dos cubos brancos parece se esforçar para remediar uma injustiça. Negros, sujeitos e objetos dessas obras, estão na crista da onda do circuito, mas sua suposta inclusão esbarra em questões de apropriaçã­o cultural e fetichizaç­ão.

O que essa exploração institucio­nal da negritude talvez revele seja menos uma reparação tardia e mais o triste fato de que, hoje, nas artes visuais, a carne mais barata do mercado é a carne negra.

 ??  ?? O quadro ‘Open Casket’ (caixão aberto), da branca Dana Schutz, ocasionou protestos ao ser exposto na Bienal do Whitney, em cartaz em Nova York
O quadro ‘Open Casket’ (caixão aberto), da branca Dana Schutz, ocasionou protestos ao ser exposto na Bienal do Whitney, em cartaz em Nova York
 ??  ?? ‘O Negro Cipião’ (c.1867), obra de Cézanne no acervo do Masp ‘Gaye com Folhas Gun’ (2015), de Ayrson Heráclito; artista estará na Bienal de Veneza
‘O Negro Cipião’ (c.1867), obra de Cézanne no acervo do Masp ‘Gaye com Folhas Gun’ (2015), de Ayrson Heráclito; artista estará na Bienal de Veneza
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil