Folha de S.Paulo

Ainda que não saibam formar uma frase, todos são escritores

- ANTONIO RISÉRIO

FOLHA

O fenômeno atinge as artes em geral, mas vou tratálo no campo literário: é o horror atual (prático e teórico) a tudo que diga respeito à qualidade e ao rigor das criações textuais. Abolidos os critérios, ninguém mais é leitor — todos agora são “escritores”, ainda que não saibam construir uma frase.

Como era esperável, a recusa até agressiva da qualidade parte justamente daqueles que estão longe de poder demonstrá-la em seus textos (“rabiscos com intenção alfabética”, seria melhor dizer, lembrando Machado de Assis).

Em “Ao Mesmo Tempo”, Susan Sontag comentou, observando que atravessam­os um tempo de reação: “Nas artes ele assume a forma de uma ação intimidado­ra contra as grandes obras modernas, tidas como difíceis demais, exigentes demais com o público, inacessíve­is”. E ainda: se alguém defende um padrão de qualidade, é atacado como elitista —“uma nova bandeira dos filisteus”.

No entanto, a qualidade existe. Mesmo que escasseie o número dos que sabem cumpriment­á-la —e mesmo que possamos não gostar de muitas das suas expressões.

Para dar um exemplo pessoal, não consigo reouvir “Le Marteau sans Maître”, mas jamais questionar­ia a qualidade do trabalho de Pierre Boulez.

Mas fiquemos no nosso tema. Na literatura recente, tome-se o Jonathan Franzen de “Liberdade”. Podemos considerá-lo excessivam­ente preso à forma romanesca oitocentis­ta. Mas sua narrativa é poderosa e sua escrita é requintada. O terno pode ser careta, mas o alfaiate é de primeira.

Mas nossos atuais e súbitos milhares e milhares de supostos escritores, incapazes de manejar as ferramenta­s do seu fazer, odeiam isso. Fingem que desprezam a competênci­a alheia. E fazem discursos aparenteme­nte “libertário­s” sobre o assunto, como se uma nova cultura devesse se buscar não através do aprimorame­nto educaciona­l, mas na base da ignorância crescente.

É assim que os mais esdrúxulos “relativism­os” pululam por aí. Para escapar das dificuldad­es da práxis literária, pretende-se que a qualidade narrativa, ou o desempenho no campo textual, deem lugar ao “vivencial”, ao “testemunho literal do eu”. Mas aí o que temos não é literatura, e sim relatos existencia­is quase sempre simplistas e deliriosos, presos nas armadilhas de “apartheids” sexoétnico­s.

Sinto muito, mas, como não me canso de repetir, a arte não é uma terra de ninguém para o grande espetáculo da incompetên­cia. Relativiza­r a produção poética significa alargar a teoria e a prática do discurso criativo para além das balizas desenhadas pelo modelo greco-latino de criação textual —e não a pretensão estúpida de enfiar num mesmo saco um terceto de Dante Alighieri e um grafite borrado da Vila Madalena.

Fernando Pessoa disse que ninguém escreve mais do que uma dúzia de poemas realmente interessan­tes ao longo da vida. Mas nossos atuais escritores pretendem produzir o dobro —e numa só manhã. Quando pelo menos 99% deles, se tivessem sensibilid­ade e conhecimen­to, se contentari­am em formar uma legião de leitores razoáveis.

Para que se tenha uma boa ideia do quadro, antigament­e os educadores diziam que nossas crianças precisavam aprender a ler e escrever. Hoje, o mesmo se pode dizer a propósito de nossos “escritores” —ou antes, escrevente­s, Barthes diria. ANTONIO RISÉRIO

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