Folha de S.Paulo

Tos diferentes do passarinho.

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Todos os dias, Johan Dalgas Frisch, 87, segue um ritual quase religioso. Pontualmen­te às 8h30, vai ao quintal de seu escritório, no coração do bairro Cidade Jardim (zona oeste de São Paulo), e deposita sobre duas mesinhas de concreto uma bandeja repleta de sementes de girassol e outra cheia de frutas, sobretudo mamões e bananas.

Depois, volta ao interior da casa, onde espia por dois ou três minutos pela janela do segundo andar. E sorri ao ver o local ser invadido por uma multidão de intrusos —dezenas de sabiás, rolinhas, periquitos, sanhaços e até asasbranca­s que atacam ferozmente o banquete em uma revoada ruidosa e pontual.

Por cima da bandeja, sempre mantêm-se os pássaros maiores e mais fortes, como a asa-branca, que bica o “filé” do café da manhã. Os periquitos e outros menores se veem obrigados a ficar com as migalhas do chão ou a chegar mais tarde para a festa.

“É só colocar comida que eles aparecem. Quem diria que existem tantas espécies diferentes em São Paulo?”, diz Dalgas, ornitólogo (estudioso de pássaros) e um dos primeiros brasileiro­s a viajar pelo país exclusivam­ente para procurar e gravar aves.

Foi em 1959, quando ninguém ainda falava sobre o tema no Brasil, que ele se embrenhoup­elaprimeir­avezpelo Mato Grosso com um gravador embaixo do braço para captar o canto de diferentes espécies. “Na época da seca, ainda é o melhor lugar no Brasil para observar.”

Dois anos depois, em 1962, foi a vez de visitar o Acre para encontrar o arisco uirapuru. Segundo uma lenda amazônica, o pássaro é na verda- de um índio apaixonado que foi transforma­do em ave e pia para o seu grande amor. Quem escuta o canto do bicho pode fazer um pedido, que logo será realizado, ainda de acordo com a história.

Ao entrar em um seringal na divisa com o Amazonas, acompanhad­o de um índio e do silêncio da mata fechada, Dalgas ouviu o uirapuru pela primeira vez. Ao preparar o microfone, percebeu que um pequeno pássaro, menor que um tico-tico, havia pousado em seus aparelhos. Tentou espantá-lo, quando levou uma bronca do guia: aquele era o próprio uirapuru.

Pela proximidad­e com o animal, o ornitólogo conseguiu um feito inédito: gravar em alta qualidade os sete can- ESTILINGUE E GAIOLA Quem escuta essas histórias nem imagina que, nos anos 1940, os passeios de Dalgas eram um pouco diferentes. Nessa época, ele costumava pedalar pelos lados do Morumbi, sempre com um estilingue a tiracolo. Qualquer coisa que voasse era logo alvo de uma pedrada.

“Hoje gaiola e estilingue sãocoisasd­opassado.Masesses passeios tinham uma boa causa: levava os passarinho­s para meu pai desenhar e, de certamanei­ra,catalogara­sespécies da cidade”, conta ele, que diz conhecer de cabeça mais de 400 cantos de aves.

Seu pai, Svend Frisch,era um engenheiro dinamarquê­s que veio tentar a vida em São Paulo em 1927. Nunca mais voltou a viver na Europa e desenhou os pássaros do filho até 1969, quando morreu.

As ilustraçõe­s estão reunidas no livro “Aves Brasileira­s e Plantas que as Atraem” (2005, 480 págs.), publicado por Dalgas. O ornitólogo tem ainda outras obras publicadas,discoscomc­antosdeani­mais lançados no Brasil, na Europa e no Japão e até um relógio analógico —que toca o canto de um pássaro diferente a cada vez que os ponteiros acusam uma hora cheia, do bem-te-vi ao uirapuru.

Mas claro que qualquer ornitólogo gosta mesmo é de ouvir os sons ao vivo. Por isso o ritual do café da manhã, que anda ameaçado nas últimas semanas pelo barulho de uma obra na casa ao lado. “Oi, vizinhos. Vocês se importaria­m de fazer silêncio durante só uma hora? Para os passarinho­s não se assustarem­epoderemco­mer”,pergunta Dalgas aos pedreiros.

E, então, parece que o único som do bairro é um bater de asas e de bicos.

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S D i v u l g a ç ã o Oo rnitólogo Johan Dalgas Frisch, 87
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Relógio criado por Dalgase que toca canto sd e pássaros

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