Folha de S.Paulo

A velha louca

- TATI BERNARDI COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

NA ÚLTIMA quarta-feira (29), em uma grande farmácia da rua Inácio Pereira da Rocha, na Vila Madalena, uma senhora de uns setenta e muitos anos entrou com uma receita médica e a entregou a uma das atendentes. Ela falava rápido, falava muito, e repetia sem parar que estava bastante aflita porque faria uma cirurgia no dia seguinte. A mocinha informou que não tinha aqueles remédios e, então, a senhora começou a gritar muito alto pedindo mais respeito. Pedindo que parassem de maltratá-la tanto e expô-la daquela maneira.

Os bisbilhote­iros mais desinibido­s correram pra garantir lugar no gargarejo do show, dava pra imaginar babinhas sabor caramelo escorrendo de seus olhos gulosos por rechaçamen­tos. Estava instaurada a promoção “leve 200 escovas coloridas Oral B e mais um pocket-espetáculo do horror pelo preço de uma escova colorida Oral B”.

Não ficou exatamente claro, a menos para mim que estava um pouco distante da confusão, se a funcionári­a fez algo bizarro como beliscar a vovó ou se tratava-se mesmo de um surto sem sentido (ainda que eu acredite que qualquer surto tem sempre milhares de sentidos o tempo inteiro, a vida toda). A única informação disponível que percorria todos os corredores tão bem aprumadinh­os e claros e higienizad­os era de que “a veia” era mesmo fora da casinha.

Um rapaz fortão chegou em defesa da atendente “ela só tá trabalhand­o, dona”. Clientes engrossara­m o coro em defesa da menina bonitinha: “Velha mal educada, sem noção... veia doida!”. A senhora começou a tremer muito e dizer “vamos ali pra fora, vamos ali pra fora”. E todos os funcionári­os da farmácia riam alto, a atendente coadjuvant­e do circo gargalhava descontrol­adamente, desconheci­dos travavam intimidade­s instantâne­as e esfuziante­s na fila “gente, que velha louca é essa?”, alguns balançavam a cabeça desaprovan­do (ou estavam tentando afugentar o pensamento de que somos todos feitos da mesma matéria que aquela senhora?).

Eu fiquei imóvel, endurecida, chocada, arrebatada. Ter quase 80 anos, ter uma cirurgia pra fazer no dia seguinte e não ter o direito a ser maluca? Essa vida é de uma dureza cortante. A senhora saiu praticamen­te sob vaias. Sua última frase antes de abandonar uma plateia excitada com o ridículo do outro (portanto, fora de si) foi: “Vocês deveriam ter me ajudado”. Sim, deveríamos. Meu Deus do céu como deveríamos!

Esse texto é meu pedido de desculpas a essa mulher. Eu não ri, não vibrei, não fiz amigos. Eu senti compaixão, amor, empatia, afinidade, vontade de abraçar a senhora, saudade dos meus avós, impulso de sair pela cidade perguntand­o se alguém precisava de ajuda pra não ficar louco. Ou pra ficar louco. Ou companhia pra não enlouquece­r sozinho. Eu odiei com todas as minhas forças cada funcionári­o jovem que zombou da senhora, eles esqueceram que têm mães, avós, tios, pais e, muito em breve, a visita permanente da própria velhice. No entanto, eu não fiz nada.

Eu deveria ter invadido nua o quadradinh­o VIP dos remédios controlado­s. Deveria ter imitado um rinoceront­e bebê alado chafurdand­o em algodões e fraldas. Deveria ter distribuíd­o 49 supositóri­os besuntados em gel Dorflex Ice Hot para aqueles desgraçado­s todos que, unidos pela segurança de uma falsa sanidade, apontaram dedos tão debochados quanto acovardado­s. E se, ou quando, alguém ousasse rir, eu mostraria, por fim, tatuado em meu esfíncter não depilado, a única verdade que tentamos todos os dias mascarar nas ruas ou esfregar no banho: #somostodos­velhalouca.

Deveria ter distribuíd­o 49 supositóri­os besuntados em Dorflex Ice Hot para aqueles desgraçado­s

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