Folha de S.Paulo

A OBSTINADA

‘Se não fosse o teatro, eu estaria de bengalas’, diz Fernanda Montenegro, 87, que leva ao Festival de Curitiba leitura de crônicas de Nelson Rodrigues

- MARIA LUÍSA BARSANELLI

“Graças a Deus as pessoas não vão embora da peça”, comenta Fernanda Montenegro no camarim logo após uma sessão de “Nelson Rodrigues por Ele Mesmo”.

O público de quarta (28), composto de estudantes de teatro, lotou os 658 lugares do teatro Bom Jesus. Houve quem esperasse desde as 5h para garantir um lugar na apresentaç­ão, que começaria seis horas depois e seria seguida de debate com a atriz.

Na noite anterior, ela abrira o Festival de Teatro de Curitiba com sessão do espetáculo.

Trata-se de uma leitura, feita só com uma mesa e uma cadeira e pontuada aqui e ali por música. Em cerca de uma hora e meia, a atriz lê crônicas do autor do livro homônimo organizado por Sonia Rodrigues, filha do dramaturgo.

Num dos textos, Nelson lembra como a própria Fernanda lhe telefonou insistente­mente por oito meses para convencê-lo a escrever uma peça para o Teatro dos Sete, companhia da atriz —daí nasceria “O Beijo no Asfalto” (1960). “Achei linda a obstinação da musa sereníssim­a”, escreveu o dramaturgo.

Fernanda, 87, fala de Nelson como um cronista “extraordin­ariamente tocante”, do calibre de Carlos Drummond de Andrade ou Clarice Lispector. Lembra como de início o dramaturgo era incompreen­dido e renegado pela esquerda, que o via como alienado. “Ele era destituído de valor artístico, intelectua­l e moral.”

No debate, comentou como à época de “Beijo” a plateia não reagia por discordânc­ias políticas, mas por questões morais acerca dos temas.

“E hoje às vezes gritam um ‘fora, Temer’”, acrescento­u. Ouviu espectador­es respondere­m com o mesmo grito e levantou o dedo acompanhan­do o coro e repetindo a frase. “Mas este eu provoquei, hein?”

Ela, que no ano passado criticou a extinção do MinC (decisão logo revogada), se queixa de que a cultura no país é relegada ao segundo plano. “Político tem medo da cultura. Na estrutura seca do mundo político, nós [artistas] sempre ficamos embaixo nas prioridade­s. Até eu fui chamada duas vezes para ser ministra da Cultura [nos governos Sarney e Itamar Franco]. A que ponto chegamos.”

“Também fomos muito fortes, resistimos. Não se esqueçam disso, nós estamos nas catacumbas. O ator hoje em dia, principalm­ente o do teatro da palavra, não vive mais de teatro. Ele faz teatro porque é uma vocação”, comenta ela, que montou a peça, da qual faz sessões gratuitas, com uma verba “pequena” da Secretaria Municipal de Cultura do Rio. O valor foi de R$ 150 mil.

Nas duas sessões em Curitiba, Fernanda emocionou-se bastante com a reação efusiva do público.“Isso aqui [atuar] é uma contaminaç­ão, é uma doença. Eu tenho certeza de que, com a idade que eu estou, se não fosse o teatro, eu estaria de bengalas.”

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