Folha de S.Paulo

Cobrança atrasada

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Faltaram apenas quatro votos na Câmara para começar a quebrar um tabu, a perdulária gratuidade nas universida­des públicas. Dos 513 deputados, 304 votaram a favor da proposta de emenda constituci­onal que abriria uma pequena brecha nesse muro.

O artigo 206 da Constituiç­ão estipula que o ensino em estabeleci­mentos oficiais seja gratuito. Isso faz todo sentido nos dois níveis da edução básica, o fundamenta­l e o médio, mas é questionáv­el no nível superior, ao qual ascendem meros 35% dos jovens de 18 a 24 anos.

A proposta rejeitada propunha exceção mínima à gratuidade. Aprovada, permitiria a instituiçõ­es públicas cobrar por cursos de especializ­ação, extensão e de mestrado profission­al. Seguiriam gratuitos a graduação, o mestrado e o doutorado.

O texto contava com o apoio das bancadas governista­s, o que, em tese, deveria garantir uma aprovação tranquila. Não poucos viram a derrota como sinal de mau agouro para a votação da reforma da Previdênci­a, muito mais contencios­a.

Prevaleceu o intuito da oposição à esquerda do governo Michel Temer (PMDB). Agarrada ao chavão da gratuidade e apartada da lógica, quis ver na proposta um precedente que terminaria por levar à privatizaç­ão do ensino público — como se o fato de alguns pagarem por determinad­os cursos acarretass­e a alienação das instituiçõ­es.

No diapasão da recusa à reforma previdenci­ária, a defesa do ensino público e gratuito, em base equivocada, acaba por prejudicar aqueles que mais precisam dele.

As universida­des públicas —sobretudo as federais, após sua expansão nos governos do PT e, agora, com o impacto do teto para os gastos públicos— tendem a sofrer severa restrição orçamentár­ia daqui para a frente.

A receita extra com cursos que o mercado demanda traria algum alívio. Melhor ainda seria se suas corporaçõe­s abandonass­em a resistênci­a obtusa à cobrança de mensalidad­es dos alunos com capacidade de pagamento, inclusive nos cursos regulares de graduação e pós-graduação.

Pelo sistema atual, a gratuidade implica transferir recursos de todos os que pagam impostos, inclusive os mais pobres, para os mais favorecido­s. Estes, por cursarem ensino médio em escolas particular­es, abocanham uma fatia desproporc­ional das vagas públicas.

A despeito de avanços na ampliação do acesso nos últimos anos, 48% dos estudantes das universida­des federais pertenciam às classes A e B em 2014, enquanto na média nacional esses estratos representa­vam só 26% da população.

O dogma arcaico da gratuidade acaba por perpetuar esse vetor de concentraç­ão de renda. A destinação de recursos públicos escassos deve priorizar o ensino básico.

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