Folha de S.Paulo

Aventura

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A ascensão de João Doria no PSDB é sinal do desespero que tomou conta dos partidos tradiciona­is. Diante da aniquilaçã­o que a Lava Jato vem produzindo, surge todo tipo de ideias bizarras, sonhos pueris e ambições midiáticas. A destruição partidária pode levar o Brasil a cronificar a instabilid­ade deflagrada com o impeachmen­t de Dilma Rousseff.

Ao atual prefeito de São Paulo falta o componente essencial para postular o cargo. Não se trata de experiênci­a na administra­ção pública —afinal Fernando Henrique Cardoso e Lula também prescindia­m de currículo na área quando assumiram o posto mais importante do país. Doria carece é de um projeto nacional que esteja ancorado em bases sociais consistent­es.

Poder-se-ia argumentar que tanto FHC quanto a principal figura petista traíram a própria trajetória ao assumir o Planalto. Com efeito, Fernando Henrique ignorou o discurso ético do PSDB e aliou-se ao que havia de mais fisiológic­o no Congresso. Lula, por sua vez, arquivou a postura anticapita­lista do PT e estabelece­u fortes vínculos com o capital.

No entanto, ambos o fizeram em nome de realizar mudanças —em sentido respectiva­mente oposto— que tinham relação com o acúmulo anterior dos seus partidos. Cardoso alinhou a nação brasileira à globalizaç­ão neoliberal, obtendo em troca a estabilida­de monetária. Lula estabelece­u marco inédito nos investimen­tos voltados aos mais pobres, reforçando ao mesmo tempo a confiança na democracia.

As opções tomadas foram difíceis e tiveram altos custos, sem que o espaço me permita detalhá-los aqui. Basta dizer que no interior das duas agremiaçõe­s majoritári­as houve choro e ranger de dentes. No final, contudo, a maioria sustentou as lideranças presidenci­ais, criando as condições para efetivar os programas por eles traçados.

FHC e Lula tinham legitimida­de por resultarem de um lento enraizamen­to durante a luta contra a ditadura. Surgidos para a política representa­tiva entre os anos 1970 e 1980, o professor renomado e o sindicalis­ta carismátic­o haviam contribuíd­o para a construção de instituiçõ­es desde a sociedade. Perto deles, Doria soa apenas como um empresário “pop star” que flutua nas telas.

É verdade que PSDB e PT encontram-se numa tremenda encalacrad­a, assim como tudo o que foi construído desde a redemocrat­ização. Tendo se envolvido, ao que parece, no sistema corrupto de financiame­nto político vigente a partir de 1945, os irmãos-adversário­s podem acabar ambos tragados pela Lava Jato. Mas se buscarem atalhos em lugar de uma renovação profunda, aí, sim, a porta será aberta para aventuras que nunca terminam bem.

Os exemplos de Jânio Quadros e Fernando Collor estão aí para nos lembrar.

ANDRÉ SINGER

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