Folha de S.Paulo

Livro narra tragédias e resistênci­a indígenas na ditadura

Investigaç­ão de jornalista da relata invasões de terra, tortura, prisões arbitrária­s e assassinat­os de índios cometidos pelo Estado

- FABIANO MAISONNAVE

Se houve um ano que não terminou no Brasil, foi 1500.

Talvez seja essa a grande conclusão ao final da leitura do livro “Os Fuzis e as Flechas: História de Sangue e Resistênci­a Indígena na Ditadura”, minuciosa e abrangente investigaç­ão do jornalista da Folha Rubens Valente sobre as barbaridad­es cometidas contra os índios na ditadura militar.

Aliando a sensibilid­ade adquirida na adolescênc­ia entre os guarani-kaiowás em Dourados (MS) com faro de repórter que lhe rendeu dois Prêmios Esso, Valente recupera, detalha e conecta tragédias esquecidas embasado por dezenas de entrevista­s e pela consulta a milhares de páginas de documentos e jornais da época.

Do Rio Grande do Sul ao Amapá, epidemias devastador­as de gripe e sarampo, realocaçõe­s forçadas, invasões de terras, tortura, trabalho escravo, pedofilia, assassinat­os, prisões arbitrária­s e censura desenham um Estado que via no índio mero empecilho ao “progresso”.

“Havia uma ideia geral menos imediata, ‘integrar’ os índios à sociedade dita ‘civilizada’, e havia um objetivo de curto prazo, ir ao encontro dos povos indígenas classifica­dos como ‘arredios’ para retirá-los do caminho e convencê-los a cooperar com grandes projetos de integração da região amazônica, como as obras de construção de rodovias e hi- drelétrica­s”, diz Valente, por e-mail.

“A iniciativa expansioni­sta pode não ter tido o genocídio indígena como uma meta clara e aberta, mas, na prática, foi o que ocorreu com muitas etnias. Como os kararaôs, os assurinis, os tapayunas, os arauetés, os panarás, só para citar alguns, que sofreram uma enorme taxa de mortalidad­e e quase foram virtualmen­te varridos do mapa”, completa.

Um dos relatos mais dramáticos do livro narra a marcha dos arauetés, contatados no Pará em meio à construção da rodovia Transamazô­nica. Em 1976, a Funai obrigou um grupo a uma caminhada de cerca de 100 km para levá-los de volta à sua área original.

Mal planejada, a marcha viajou com pouco alimento e não tinha medicament­os suficiente­s para doenças como conjuntivi­te e gripe, arrasadora­s em índios recém-contatados. O resultado foi trágico.

Logo nos primeiros dias, já foram registrada­s as primeiras mortes. Ao final, ao menos 73 morreram, o equivalent­e a 36,5% da população da etnia daquela época.

Valente revela também aspectos nada lisonjeiro­s de alguns indigenist­as famosos, subordinad­os a uma Funai militariza­da e instrument­aliza- da para tirar os índios do caminho de grandes obras e da fronteira agrícola.

Orlando Villas Bôas (19142002), um dos idealizado­res do Parque do Xingu, teria barrado um relatório sobre a morte por sarampo ou gripe de ao menos 40 de 47 kararaôs recém-contatados, no Pará, para proteger o colega Francisco Meireles, supervisor da expedição.

Parte do livro de 480 pági- nas é dedicada à resistênci­a, personific­ada em figuras como a do guarani-nhandeva Marçal de Souza, um dos porta-vozes da causa indígena da época —chegou a discursar para o papa João Paulo 2°. Ele foi constantem­ente perseguido pela ditadura. Em 1976, a Funai o exilou de Dourados para outra terra indígena. Acabou assassinad­o com três tiros em 1983, em crime nunca esclarecid­o.

Lançado na semana passada, o livro é resultado de um grande esforço pessoal de Valente, que custeou com recursos próprios mais de 90% da pesquisa —o restante foi bancado pela editora Companhia das Letras. Apenas de carro, ele rodou 14 mil km.

Com informaçõe­s inéditas, a obra tem potencial para reabrir a discussão sobre reparações aos índios, até agora pontuais, e deve subsidiar debates recentes, como decisões do STF de anular demarcaçõe­s de áreas indígenas que não estavam ocupadas ou sob disputa em 1988, quando a nova Constituiç­ão foi promulgada.

Em 20 de abril, Valente falará sobre o livro na Comissão de Direitos Humanos do Senado. Um dia antes, participar­á de mesa na Procurador­ia da República em São Paulo. AUTOR Rubens Valente EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 69,90 (520 págs.) LANÇAMENTO Quinta-feira (6), na Livraria da Vila da rua Fradique Coutinho, 915, em SP, às 19h30

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Acervo Fotográfic­o da Funai Imagem retrata guarda rural indígena; livro narra marcha dos arauetés em meio à construção da Transamazô­nica

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