Folha de S.Paulo

Classifica­ção de golpe de Estado divide analistas

- CLÓVIS ROSSI COLUNISTA DA ISABEL FLECK GUILHERME MAGALHÃES

FOLHA DE WASHINGTON

Os quatro países fundadores do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) fazem neste sábado (1º) reunião extraordin­ária que, se dependesse só da opinião do chanceler brasileiro, Aloysio Nunes, terminaria com decisões drásticas a respeito da crise política na Venezuela — após o TSJ (Tribunal Supremo de Justiça), dominado pelo governo, ter assumido as funções da Assembleia Nacional, de maioria opositora.

Uma das decisões poderia ser até mesmo a expulsão de Caracas do bloco, do qual foi suspensa no ano passado.

Em Washington, onde se reuniu com o secretário-geral da OEA (Organizaçã­o dos Estados Americanos), Luis Almagro, na manhã de sexta (31), o líder opositor venezuelan­o Henrique Capriles disse apoiar sanções por organismos regionais.

“Todos [os blocos] têm cláusulas a serem respeitada­s, cumpridas. Se o governo venezuelan­o não as cumpre, que venham as sanções, as consequênc­ias. Eu respaldo toda decisão que aponte para resgatar a democracia no meu país”, disse Capriles.

Mas, antes de que venham sanções, de qualquer natureza, o chanceler brasileiro prefere ouvir a opinião de seus colegas para só depois, eventualme­nte, pôr à mesa qualquer proposta mais dura, como seria a expulsão.

O teorema de Aloysio é simples e assim formulado:

1 - A suspensão da Venezuela, adotada unanimemen­te, se amparou num argumento técnico: o país não cumpriu, no prazo devido, os compromiss­os assumidos quando sua adesão foi aceita.

2 - Agora, a decisão de cassar os poderes da Assembleia representa uma “mudança qualitativ­a”, diz o ministro. Trata-se de “uma ruptura clara da ordem democrátic­a”.

3 - Logo, manter a Venezu- ela no bloco, apenas suspensa, seria “uma ficção, que avacalhari­a o Mercosul”, afirma Aloysio, enfatizand­o que “avacalhar” é uma palavra adequada.

Mas o chanceler sabe que qualquer nova decisão sobre a Venezuela terá que ser adotada por unanimidad­e, como aconteceu no ano passado. Para prosperar uma eventual expulsão, o grande obstáculo seria o Uruguai, por questões de política interna.

O país é governado pela Frente Ampla, uma coligação de esquerda na qual há setores que ainda defendem o regime venezuelan­o.

O grupo partidário divulgou nota de repúdio à sentença do TSJ, mas que foi aprovada por apenas 14 dos 25 partidos membros.

Argentina e Paraguai, ambos governados por grupos de centro-direita, fizeram críticas ao endurecime­nto do regime de Nicolás Maduro semelhante­s às que faz o chanceler brasileiro. Estariam em tese, portanto, a favor do en- dureciment­o.

A opinião de Aloysio parte de uma premissa: a de que não haverá volta atrás tão cedo na ruptura da ordem democrátic­a em Caracas. “O governo Maduro diz que é uma revolução, e a lógica da revolução é incompatív­el com a alternânci­a no poder.”

Parte dos países-membros da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) também condenou os episódios na Ve-

HENRIQUE CAPRILES

líder opositor venezuelan­o nezuela, que “atentam contra os princípios e valores essenciais da democracia”, segundo nota conjunta dos governos de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Uruguai. REUNIÃO O que pode enfraquece­r a manifestaç­ão deste sábado do Mercosul é a ponderação da própria oposição venezuelan­a, segundo a qual o governo Maduro poderia usar eventuais sanções como uma prova do que afirma sempre, ou seja, de que há um cerco da direita a um regime que se diz democrátic­o.

A reunião deste sábado será em Buenos Aires porque a Argentina é a presidente de turno do Mercosul. Foi convocada devido “à grave situação institucio­nal da Venezuela”, anunciou a chanceler Susana Malcorra.

Para o líder opositor Capriles, o Mercosul não deve ser a única instância a adotar sanções contra a Venezuela. Ele disse esperar que a OEA se pronuncie oficialmen­te sobre o que chama de golpe de Estado em seu país e que a invocação da Carta Democrátic­a “deve seguir seu curso”.

Se invocada a Carta da OEA, a Venezuela pode, em última instância, ser suspensa do organismo, como ocorreu com Honduras, em 2009, após o golpe contra o presidente Manuel Zelaya.

Um grupo de 20 países, incluindo o Brasil, pediu uma sessão extraordin­ária do Conselho Permanente para a segunda (3). A ideia é aprovar, na reunião, declaração dizendo que houve “alteração de ordem constituci­onal” na Venezuela com a decisão do TSJ.

Se submetido a votação, o texto precisará de 18 votos para que seja aprovado, no primeiro passo da aplicação da Carta Democrátic­a. O processo, porém, é longo, e privilegia gestões diplomátic­as antes de se discutir de fato a suspensão —para a qual são necessário­s 23 dos 34 votos.

O Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) venezuelan­o sustenta sua decisão de assumir as funções da Assembleia Nacional em um artigo da Constituiç­ão que não determina expressame­nte essa medida.

O tribunal considera que houve “omissão parlamenta­r inconstitu­cional” da Assembleia, que empossou deputados acusados de fraude eleitoral. Em caso de omissão, diz o artigo 336, a Corte pode “estabelece­r diretrizes de correção”, mas sem detalhar o que seria isso.

“O que prevê o 336 estabelece que o TSJ deve estabelece­r prazos e diretrizes para a correção de atos inconstitu­cionais. Disso para o ato de ‘atuar como o Poder Legislativ­o’ vai uma distância muito grande”, afirma o cientista político da Unicamp Wagner Romão.

O analista, porém, é cauteloso ao não classifica­r a ação do TSJ como um golpe de Estado. “Enquanto não se tiver caracteriz­ada uma situação em que o Executivo e o Judiciário, irmanados, tomam conta de todas as representa­ções de poder no país, ainda não caracteriz­aria como um golpe de Estado completo.”

Já o professor da Escola de Relações Públicas e Internacio­nais da Universida­de Columbia (EUA), Christophe­r Sabatini, afirma que há em curso um “golpe em pequenos passos”.

Ele cita as decisões da Assembleia anuladas pelo TSJ, o adiamento das eleições regionais de dezembro e as manobras do CNE (Conselho Nacional Eleitoral) para atrasar a convocação de um referendo revogatóri­o contra Maduro.

“A erosão da democracia é uma ameaça maior do que um golpe de fato. Um golpe geralmente é um ato que você pode reconhecer: tanques marcham pelas ruas ou uma multidão invade o palácio”, diz.

Para o cientista político Enrique Peruzzotti, da Universida­de Torcuato di Tella, de Buenos Aires, a Venezuela hoje pode ser considerad­a uma ditadura “posto que foi formalment­e desmantela­do o princípio republican­o da separação de poderes, ignorando a vontade popular”.

Todos [os blocos] têm cláusulas a serem respeitada­s. Se o governo venezuelan­o não as cumpre, que venham as sanções. Respaldo toda decisão que resgate a democracia no meu país

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Ariana Cubillos/Associated Press Jovem é perseguido e detido por agentes da Guarda Nacional Bolivarian­a, em protesto diante da sede do TSJ, em Caracas

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