Folha de S.Paulo

Naquela época, eu trabalhava numa agência de publicidad­e, na área de criação,

- ESTELITA HASS CARAZZAI

DE CURITIBA

O lugar de existência das travestis, para a sociedade, é na rua e na prostituiç­ão. Se eu parar dois minutos para esperar o ônibus, já acham que estou marcando ponto. A nossa presença, fora da prostituiç­ão, não é naturaliza­da. Por causa disso, eu encenei por muito tempo uma existência masculina que não era minha, para poder sobreviver. Foi um processo de resistênci­a.

Nasci em Cianorte, no Paraná, já tem mais de 40 anos. A idade exata é segredo de Estado! Meus pais vieram de Minas Gerais, da roça mesmo, atraídos pela promessa do café. Éramos em sete irmãos. A partir dos sete anos, todo mundo tinha que trabalhar. A escola era algo secundário.

Desde muito cedo, minha identidade de gênero já era muito clara. O meu sonho era ter cabelo comprido. Amarrava a tolha de banho na cabeça e fazia um coque, como a minha mãe. Em casa, só me chamavam de Kim, que era uma abreviação do meu nome. Meus irmãos respeitava­m, não me expunham. Eram muito solidários. Tinha um esconderij­o no fundo do quintal, onde colocava minhas bonecas, roupinhas, bijuterias.

Foi na escola que começou a marcação cerrada. A fila dos meninos, o banheiro dos meninos. Eu não respondia chamada de jeito nenhum, porque não me reconhecia naquele nome. Comecei a sofrer assédio moral, ameaça de violência. E a me retrair.

Eu tinha uma existência muito solitária e desenhava muito. O desenho surgiu como uma forma de me comunicar com as pessoas. Naquela época, eu nem sabia o que era universida­de. Na minha casa, não tinha nem livro.

Com 20 anos, me mudei para Curitiba. Porque tinha que expressar minha identidade de gênero. Mas foi muito gradual. Quando ia para o trabalho, expressava uma identidade masculina. Mas, quando estava em casa, aí eu exercitava minha feminilida­de.

Foi uma estratégia de sobrevivên­cia, mesmo. Me reconhecia como travesti desde muito cedo, mas não queria a prostituiç­ão. Porque esse era o lugar da travesti, de muita violência e sofrimento. Existe até um processo de cafetinage­m por trás disso tudo. Mas não queria nada disso para a minha vida. Então, fazia uma encenação pública, uma performanc­e masculina. UNIVERSIDA­DE com desenho. E enfrentei muito preconceit­o, tanto por racismo quanto por homofobia.

Fui percebendo que, se não tivesse boa formação acadêmica, não ia ter lugar nenhum no mundo. A minha existência seria um fracasso absoluto. À medida que fui progredind­o academicam­ente, fui me construind­o como travesti e negra, expressand­o minha identidade. Aí tinha um repertório para me proteger.

A universida­de foi um espaço emblemátic­o, assim como os movimentos sociais. Eu me formei em desenho na Escola de Belas Artes do Paraná, fiz especializ­ação em história da arte e história e cultura africana. Tentei o mestrado em educação na UFPR quatro vezes, até passar. Era aquela história: eu passava na prova escrita, o meu projeto era bem avaliado, mas não havia ninguém para me orientar. Era muito constrange­dor.

Até que um professor [Paulo Vinicius Baptista da Silva] aceitou meu projeto e me tomou como orientanda. Aí minha carreira deslanchou. Dei aula, escrevi artigos, emendei o doutorado, me deram espaço para trabalhar.

Não que tenha sido fácil. Eu só sou uma doutoranda quando estou na UFPR. Quando eu coloco o pé fora

A gente quer ter voz, queremos ser tratadas como pessoas que pensam e produzem conhecimen­to. A educação possibilit­a essa mudança

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil