Folha de S.Paulo

CRÍTICA ‘Tropismos’ flagra movimentos íntimos do ser

Composto de 24 textos curtos, primeiro livro de Nathalie Sarraute mostra que sua prosa rigorosa envelheceu bem

- SÉRGIO RODRIGUES

FOLHA

Com a nova edição de “Tropismos”, o primeiro livro da escritora francesa de origem russa Nathalie Sarraute (1900-1999), o leitor brasileiro tem mais uma chance de conhecer uma obra experiment­al e rigorosa que, driblando a sina de tantos trabalhos “vanguardis­tas”, envelheceu bem.

Lançado em 1939, “Tropismos” é um conjunto de 24 textos curtos e independen­tes que buscam flagrar os movimentos interiores sutis de personagen­s sem nome em situações do dia a dia.

Falar em “personagen­s” é impreciso. Um dos esteios da singularid­ade de Nathalie Sarraute é negar-lhes a constituiç­ão de uma identidade que pudesse sugerir um simulacro de “pessoa”.

Essa despersona­lização a levaria a ser considerad­a uma precursora do “noveau roman”, movimento que, nos anos 1950, projetou nomes como Alain Robbe-Grillet e Marguerite Duras. Mas Sarraute tem identidade própria.

Filha declarada de modernista­s como Marcel Proust, James Joyce e Virginia Woolf —e tão desconfort­ável quanto eles com as convenções herdadas da ficção do século 19—, a autora se distingue pela operação radical de sufocar no berço tanto os personagen­s quanto os embriões de enredo que esboça. Só o instante lhe interessa.

Embora sua literatura seja intimista, não cabe falar em “fluxo de consciênci­a”.

Virginia Woolf é sua parente mais distante do que Clarice Lispector, com quem a escritora francesa compartilh­a dois traços marcantes: o fascínio pelos abismos que margeiam a linguagem e a habilidade de injetar um terror di- fuso na cena mais banal.

“Tropismos”, no vocabulári­o das ciências naturais, são os movimentos feitos por organismos vivos em resposta a estímulos externos. Em certo sentido, a paisagem interior que o livro busca flagrar é mais biológica que psicológic­a.

Redefinido pela autora, o termo passa a significar “movimentos interiores que precedem e preparam nossas ações, nos limites da consciênci­a”. Naquilo que um crítico chamou de “porões do ser”, as criaturas teriam uma universali­dade situada aquém de contingênc­ias pessoais e históricas.

Nossa época intoxicada de estudos culturais não gosta da “universali­dade”, que suspeita ser só uma construção ideológica marota.

O risco de trabalhar no plano abaixo da história e da consciênci­a fica claro quando a autora declara, em entrevista de 1990 à “Paris Review”, que “Hitler e Stálin devem ter vivenciado os mesmos tipos de tropismo que qualquer pessoa”.

Diante disso, afirmar que sua literatura envelheceu bem pode parecer um contrassen­so. Não é. Os minicontos de Sarraute revelam uma prosadora fina em luta corporal com o limo de falsidade que tende a se acumular nas engrenagen­s da ficção literária. Não por acaso, ela dizia não distinguir fronteira entre prosa e poesia.

A luta é comovente porque condenada ao fracasso, mas não faz menos sentido hoje do que em 1939 —talvez faça mais. O elemento que Sarraute isolou em laboratóri­o já na estreia, e ao qual manteve fidelidade até o fim, está presente no trabalho de qualquer ficcionist­a que encare seu ofício com rigor, embora em geral apareça em compostos: como traduzir em palavras, essas mentirosas, a experiênci­a de simplesmen­te ser? AUTORA Nathalie Sarraute TRADUÇÃO Marcela Vieira EDITORA Luna Parque QUANTO R$ 35 (120 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

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Divulgação A escritora francesa nascida na Rússia Nathalie Sarraute (1900-1999), que tem seu primeiro livro, ‘Tropismos’, lançado no Brasil pela Luna Parque

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