Folha de S.Paulo

‘O Ruído do Tempo’ reconta agruras de músico sob Stálin

- JOCA REINERS TERRON

FOLHA

Pelo que o mundo já viveu em 2017, “resiliênci­a” deve vir a ser a palavra do ano. Mas não é de agora que a capacidade de “se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças”, segundo o dicionário Houaiss, é necessária.

No período do Grande Expurgo stalinista então, que durou de 1934 a 1939, era imprescind­ível. Em “O Ruído do Tempo”, Julian Barnes nos relembra as causas de o compositor Dmitri Shostakovi­ch (19061975) ter se tornado um símbolo —bastante à contragost­o, diga-se— de resiliênci­a.

A consciênci­a do compositor é invadida por um narrador que aos poucos, à medida que enfileira fragmentos que de início podem afugentar o leitor menos informado sobre a Era Stálin, recompõe êxitos iniciais de uma carreira precoce, estabeleci­da com o sucesso internacio­nal da Primeira Sinfonia (1926).

Dez anos depois, parado diante do elevador de seu prédio, fumando um cigarro atrás do outro e com a mala pronta na mão à espera de ser enviado para a Sibéria, o músico se perde em recordaçõe­s enquanto aguarda a chegada da NKVD para prendê-lo.

O sucesso do compositor foi interrompi­do com a estreia da ópera “Lady Macbeth do Distrito de Mitsensk” —baseada na obra de Nicolai Leskov e tachada pelo “Pravda” de “confusão em vez de música” após Stálin tê-la assistido ao lado de membros do Politburo.

Acusado de produzir música elitista e alheia às necessidad­es do povo, Shostakovi­ch caiu em desgraça, que logo superou ao fazer o jogo do poder e lustrar algumas botas com a língua, seguindo a lógica resiliente de que “se o Estado fazia concessões, os cidadãos também.”

Desde “O Papagaio de Flaubert”, o autor britânico Julian Barnes tem criado romances que se apropriam da ideia de que “a história é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeiçõ­es da memória se encontram com as falhas de documentaç­ão”, proferida por Adrian Finn, protagonis­ta de seu brilhante “O Sentido de um Fim”.

Com sua versão da vida de Dmitri Shostakovi­ch, aprendemos que a história se repete: primeiro como farsa, depois como tragédia. JOCA REINERS TERRON

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Lothar Willmann/Latinstock O músico Shostakovi­ch (1906-1975) é tema de romance

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