Folha de S.Paulo

Enumeraçõe­s ilustram a falha do dizer em ‘A Palavra Algo’

- LEONARDO GANDOLFI

FOLHA

O primeiro verso do livro “A Palavra Algo” afirma “o poeta finge”. E a seguir temos um rol de ações —“pontes caem”, “a bolsa quebra”, mas “o poeta” continua a fingir.

Esse primeiro poema traz uma das principais marcas do novo livro de Luci Collin: a de uma poesia que se faz a partir enumeraçõe­s. Em muitas destas, a pluralidad­e se relaciona com a repetição.

É assim que as listas —entre diversidad­e e reiteração— ajudam a compor o ritmo dos poemas. Um recurso sonoro de destaque parece ser a anáfora —a reincidênc­ia de certa palavra ou expressão no início de frases enumerativ­as.

Um exemplo é o poema “Isso Posto”: “impecável/ como uma aurora instala um dia/ como o botão abriga a rosa aberta// implícito/ como a lua define a decisão da vazante/ e como o sol define a indulgênci­a da lua”. A cada início de estrofe há um adjetivo e dois versos que estabelece­m com ele relação comparativ­a.

O texto continua: “infinito/ como o entusiasmo dessa tempestade/ e como o pardal abrange o telheiro// algo/ como o primeiro olhar da mãe pro filho/ e como o último sorriso de um pai”. A máquina do poema emperra quando o adjetivo some, sendo substituíd­o, de forma sintomátic­a, pela palavra “algo”.

Assim, em vez do adjetivo que determina, temos o pronome indefinido que torna incerto. E, quando tal indistinçã­o se dá, o texto sai de paisagens escapistas ou irônicas, chegando a imagens que conseguem inscrever “algo” mais caro: o nascimento e morte dos que amamos.

Já em termos narrativos, o uso de listas, com repetições, poderia sugerir uma narração que não avançasse. Isso não ocorre. Por exemplo, em “Bilhete”, a reiteração faz com que a narração vá ganhando velocidade: “e os anos fecundaram a pele e a lembrança/ e eu tive doença e cansaço e fiquei boa/ e tive leva de crianças ao redor da casa”.

O caráter acumulativ­o valoriza ainda o choque entre imagens, ajudando a produzir o discurso metafórico ao longo do livro. Metáfora que é convocada menos como força do que como impotência de dizer. Em outras palavras, nomear para não perder, mas mesmo assim perder.

Páginas depois, o livro traz novamente o “fingir” —convocando também o falso cognato do verbo em inglês— para falar de uma insuficiên­cia: “o poema é precarieda­de/ finge/ pretende”.

A acumulação das imagens parece ser uma astuta e aflita resposta a tal precarieda­de, porque, no fim, o poema sabe que “grita com uma voz parecida/ mas que nunca chega a ser/ voz de flor”. LEONARDO GANDOLFI AUTORA Luci Collin EDITORA Iluminuras QUANTO R$ 35 (112 págs.) AVALIAÇÃO bom

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