Folha de S.Paulo

Pão, circo e sangue

- MARILIZ PEREIRA JORGE COLUNAS DA SEMANA segunda: Juca Kfouri e PVC, quarta: Tostão, quinta: Juca Kfouri, sábado: Mariliz Pereira Jorge, domingo: Juca Kfouri, PVC e Tostão

SÓ SOUBE de orelhada que o Brasil ganhou de três, que a Arena Corinthian­s estava lotada de torcedores entusiasma­dos, que Neymar saiu aclamado. Parece que a torcida fez as pazes com o time, com o técnico, com o futebol brasileiro. Página virada.

Somos um povo que gosta de pão e circo. E nos contentamo­s com as migalhas que nos atiram: algumas vitórias, classifica­ção garantida para a Copa do Mundo e, voilà, já começamos a gritar “é hexa”. Nada como o futebol para juntar coxinhas e petralhas aplaudindo uma entidade corrupta como a CBF.

Um colega, jornalista, a quem admiro muito, diz que “a seleção não é da CBF, mas do torcedor”, e que se eu deixar contaminar tudo que gosto com a sujeira de alguma etapa da cadeia (de produção) não me sobrarão muitas opções.

Ele tem razão. Até hoje não coloquei os pés no Itaquerão e não me lembro da última vez que vi a seleção jogar. Talvez tenha sido em 2014. Queria ser mais romântica e me deixar levar pelo amor ao esporte e à camisa amarela, mas então lembro que essa camisa carrega um símbolo, para mim nefasto, o da CBF. Acabo mudando de canal.

Ele tem razão. Fico nessa ranzinzice solitária, enquanto o povo se diverte. Deveria começar a arrumar as malas com destino à Rússia e mandar um cartão postal para Del Nero. Ele não pode viajar, mas eu posso.

O boicote tinha que ser completo. Atletas deveriam se negar a jogar, o técnico deveria honrar a sua assinatura no abaixo-assinado que pedia a saída de Marco Polo Del Nero. Os patrocínio­s deveriam minguar até que a CBF ficasse raquítica e não tivesse mais como se sustentar.

Como diria Maria Bethânia, sonho meu, sonho meu. SANGUE Pelo visto também gostamos de sangue. Só isso explica a falta de sensibilid­ade e de timing da diretoria do Flamengo ao aprovar o vídeo para a campanha “Isso aqui é Flamengo!”. O objetivo, dizem, era mexer com o emocional da torcida. Resta saber que tipo de torcedor ficou “mexido” com um filme tão sombrio.

O Flamengo acabou de ter integrante­s da Torcida Jovem presos pela morte do botafoguen­se Diego dos Santos. Fico perplexa ao pensar na quantidade de gente envolvida na criação de uma campanha dessa e ninguém para dizer que o resultado é de mau gosto atroz, além de mostrar a total falta de conexão com a urgência de colocar um ponto final nos episódios de violência entre as torcidas.

O comediante Claudio Manoel, torcedor do Flamengo, descreveu com perfeição, por que o resultado final incomodou mesmo gente muito apaixonada pelo time.

“Além do ufanismo meio babaca e metido a machinho, a ‘peça’ tem uma óbvia associação de futebol/ torcida com raiva/violência, não só no tom e conteúdo do texto, passando pelo ‘som’, com a simbiose clichê: ‘batimentos cardíacos/adrenalina’, mas, principalm­ente, nas várias imagens de gosto e conceito pra lá de duvidosos: um coração sendo esmagado, um líquido vermelho que faz alusão a sangue e o slogan final escrito em chamas, com uma simbologia também óbvia. Acho que orgulho e paixão são uma coisa, raiva e exibição de testostero­na, outra. A campanha visa encher os estádios com famílias ou hooligans? Atrai mais rivalidade e ódio ou o público feminino? A quem tem como alvo: os que amam ou os irados?”

Pelo jeito os que querem sangue.

Somos um povo que gosta de pão e circo. E nos contentamo­s com as migalhas que nos atiram

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