Folha de S.Paulo

Dando nome aos bois

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NÃO SE passa impunement­e pela experiênci­a de viver num país que tem mais bois no pasto (214 milhões de cabeças) do que brasileiro­s. Nossa identidade é impactada pelo que alguns chamam de “opção estratégic­a”. A pecuária ocupa 172 milhões de hectares, mais de 20% do território brasileiro —três vezes mais que a área ocupada pela agricultur­a—, e esse amplo domínio territoria­l se dá de forma perdulária, com apenas um boi por hectare (em média) e mais da metade dos pastos com altos níveis de degradação.

A tradição ruralista de “enricar” com uns boizinhos no pasto é antiga. O mais recente Mapa Fundiário do Brasil aponta que mais da metade do território nacional (53%) é de terras privadas.

Parte dessas terras pertence aos políticos que, por vezes, dão claros sinais de legislar em causa própria. Um levantamen­to feito pela pesquisado­ra da USP Sandra Helena G. Costa, reunindo todos os deputados federais e senadores da legislatur­a anterior —quando a bancada ruralista era menor do que é hoje—, revelou que 351 parlamenta­res declararam possuir 863.646,53 hectares de terra. Atualmente, a Frente Parlamenta­r da Agropecuár­ia (FPA) repudia qualquer política contrária aos interesses do setor.

Nem o conjunto de medidas destinadas a reduzir o estoque de dor e crueldade impostos aos animais nos processos de criação, transporte e abate —denominado de “bem estar animal”— é levado a sério pelo atual ministro da agricultur­a. Dias atrás, em uma coletiva em Brasília, Blairo Maggi menosprezo­u o que vem sendo defendido por cadeias de fornecedor­es do setor de alimentos. “Vai ao contrário do que a gente está fazendo aqui. Tomamos a decisão de não avançar nessa área”, disse o ministro. Aliás, a expressão “proteína animal” é bastante convenient­e para “coisificar” o que é na verdade um ser vivo complexo, capaz de sentir dor e medo. Quem pensa nos direitos da “proteína”?

Principal vetor de desmatamen­to no Brasil, ostentando indicadore­s vexatórios de flagrantes do Ministério do Trabalho pelo uso de mão de obra equivalent­e à escravidão, sem certificaç­ões confiáveis de origem (a própria JBS, com seus mais de 70 mil fornecedor­es de gado, admite problemas em rastrear toda a sua cadeia) e com um terço de toda a produção de carne do país sem qualquer fiscalizaç­ão, essa indústria ainda tem muito o que avançar.

A sociedade deve exigir rastreabil­idade e selagem confiáveis e punição para quem não produz de forma ética, respeitand­o as legislaçõe­s. Comer carne é opção de cada um. Saber o que vem junto também.

Principal vetor de desmatamen­to no Brasil, a indústria pecuária ainda tem muito o que avançar

AMÉRICO JOSÉ escreve na próxima edição

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