Folha de S.Paulo

Pílula reprovada

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A medicina avançou nas últimas décadas até o ponto de tornar tratáveis várias formas de câncer. Outros tumores continuam refratário­s às terapias conhecidas, o que muitas vezes leva seus portadores a buscar todo tipo de tratamento, mesmo quando não se conta com validação científica.

Nesse campo de aflição surgiu a fosfoetano­lamina, que ganhou o epíteto de “pílula do câncer” —e, agora, infelizmen­te, ingressa no rol dos compostos que falharam em testes de laboratóri­o.

Peculiar, no caso, foi o caminho percorrido. Por duas décadas um químico da USP fabricou a pílula e a distribuiu a pacientes, sem licença da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Nesse período, relatos de melhoras de quadros clínicos alimentara­m as esperanças dos doentes. Interrompi­da a distribuiç­ão da substância, após a aposentado­ria do docente, muitos deles obtiveram na Justiça decisões obrigando a universida­de paulista a retomá-la.

Por mais que a compaixão humana pareça justificar as medidas, o Judiciário coonestou de maneira perigosa a subversão de protocolos voltados a proteger os pacientes em geral. O mesmo acabaram fazendo o Congresso Nacional e os governos federal e paulista.

Os parlamenta­res aprovaram às pressas uma norma específica permitindo o uso da pílula sem licença. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicaçõ­es passou a fosfoetano­lamina na frente de outras substância­s e patrocinou testes com culturas de células e com animais.

Os resultados, porém, decepciona­ram: a pílula apresentou atividade contra poucos tipos de tumor e só em doses bem mais altas do que as ministrada­s pela USP.

Apesar disso, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), atendendo aos apelos de doentes e seus familiares, anunciou em julho de 2016 que o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) realizaria testes em pacientes. O estudo, orçado em R$ 1,5 milhão, duraria dois anos.

Após oito meses, a pesquisa foi suspensa, por não ter se comprovado benefício clínico significat­ivo. De 59 pacientes, apenas um, portador de melanoma, apresentou melhora do quadro clínico (e não há segurança de que tenha sido por obra da “pílula do câncer”).

A fosfoetano­lamina, contudo, mantém-se no mercado, pois passou a ser vendida como suplemento alimentar. Em fevereiro, a Anvisa suspendeu peças publicitár­ias do produto, que irresponsa­velmente sugeriam suas propriedad­es terapêutic­as não comprovada­s.

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