Convulsão pode ser novo normal na região
Episódios recentes na América Latina expõem sociedades divididas em que governos estão longe de unanimidade
Nos últimos dias, tivemos a sensação de um tsunami de notícias na América Latina.
Na Venezuela, foram retirados os poderes legislativos do Congresso, para logo depois serem devolvidos.
No Paraguai, manifestantes incendiaram parte da sede parlamentar, inconformados com a aprovação de uma emenda para a reeleição.
Na Argentina, uma multidão, inesperada até para o presidente Mauricio Macri, foi às ruas manifestar apoio a ele e repúdio a greves, piquetes e o barulho que têm feito o que chamam de “forças desestabilizadoras” —o peronismo em reorganização.
No Equador, houve uma eleição disputada em que o perdedor acusa o governo de ter manipulado votos em favor de seu candidato. São fatos relacionados? Sim e não. Sim, pois a América Latina está inserida no momento de transformação cultural e política pela qual passa todo o planeta. Não, porque cada país vive as mudanças em seu contexto.
Em episódios como a eleição de Donald Trump nos EUA, a decisão dos britânicos de deixar a União Europeia e o ressurgimento da Rússia com pretensões totalitárias, o fio condutor é o mesmo.
Em todos os casos, nota-se em parcela significativa da população um cansaço com o modo de fazer política desde o consenso democrático estabelecido após a queda do Muro de Berlim (1989).
Essa mesma parcela reage de maneira emotiva e raivosa, potencializada pelas redes sociais, a transformações que acompanharam esse pacto e que jamais haviam sido completamente incorporadas por ela: a maior aceitação das diferenças sociais, de gênero, raciais e religiosas.
Houve, nos casos citados, uma resposta às conquistas do liberalismo e da esquerda politicamente correta.
Porém, essa reação não é majoritária. Surge mais como fator de divisão nas sociedades, seja nas redes sociais, na vida real ou nas eleições. ACIRRAMENTO Como esse processo se revela na América Latina? De forma muito parecida. Nos países que produziram notícias nos últimos dias, vemos sociedades mais divididas.
Na Argentina, após semanas de piquetes contra o governo de direita, surgiu nas ruas uma multidão vestida de azul e branco, convocada em redes sociais, a apoiar Macri. O presidente ganhou a eleição em 2015 por apenas 600 mil votos e hoje tem 53% de aprovação —marca invejável, mas com 47% em desacordo.
No Paraguai, Cartes e seu estilo empresarial melhoraram os índices macroeconômicos do país, que cresce de forma robusta e atrai investimentos externos. Mas se o magnata do tabaco agrada a um setor acostumado ao poder desde a ditadura Stroessner (1954-1989), falta-lhe con- quistar o coração do eleitor.
Sua pouca atenção às camadas menos favorecidas da população e seu menosprezo ao diálogo com o Congresso virou parte do país contra ele. Se mantém o apoio da elite e do empresariado, perde as ruas, os jovens e as classes média e baixa. Por isso, sua tentativa de alterar a Constituição para ficar no poder caiu mal. A disputa pelas eleições de 2018 já começou, acirrada.
No Equador, essa cisão foi explicitada no espaço de poucas quadras em Quito, onde se via uma multidão festejar a vitória do governista Lenín Moreno, na avenida de los Shyris, enquanto diante do Conselho Nacional Eleitoral apoiadores de Guillermo Lasso protestavam por uma suposta fraude na votação, em que Moreno foi preferido por 51,1%, e Lasso, por 48,8%.
A Venezuela, um caso extremo pelo fato de o atual governo ter desrespeitado instituições e administrado mal a economia, também se enquadra no processo. Excetuando-se os últimos anos, não foi incomum na era chavista ver protestos dos dois lados.
Discordo, porém, que a América Latina esteja em um giro à direita. Não creio que os latino-americanos eram tão esquerdistas na década passada e que agora se transformaram em reacionários.
Parece uma explicação simplória. Os números mostram que em nenhum país um modelo substituiu totalmente o outro entre os eleitores.
Mostram, sim, que os tempos são outros, e já não haverá político latino-americano ganhando eleição de lavada. São tempos de divisão acentuada entre um modelo mais progressista, voltado à justiça social, e um mais pragmático e liberal, que privilegie a abertura econômica.
Assim, o papel dos governantes passa a ser também o de ser menos personalistas e conciliar, uma vez que já não têm amplo apoio, precisam conviver com uma oposição mais combativa e garantir a governabilidade e os direitos dos que pensam diferente.
Caso contrário, novos episódios de violência virão.
Se tivemos a sensação de que ocorreu muita coisa em poucos dias é porque mostras desse novo contexto regional vieram à tona de uma vez.
Talvez essa seja a nova normalidade na América Latina.