Folha de S.Paulo

ANÁLISE Decisão é fruto de décadas de articulaçã­o política internacio­nal

- REINALDO JOSÉ LOPES

FOLHA

A decisão judicial em favor da fêmea de chimpanzé Cecilia é fruto de décadas de articulaçã­o política internacio­nal. Em última instância, o objetivo dessa aliança entre primatolog­istas, filósofos, advogados e ativistas é que as nações da Terra adotem uma espécie de “Declaração Universal dos Direitos Não Humanos”, segundo a qual os parentes mais próximos do Homo sapiens (e talvez outros animais também) deixem de ser classifica­dos legalmente como coisas e passem a ser vistos como pessoas.

O primeiro grande marco desse plano veio em 1993, com a criação do GAP (sigla inglesa de “Projeto Grandes Macacos”). Capitanead­o pelo filósofo australian­o Peter Singer e por sua colega italiana Paola Cavalieri, o GAP recebeu ainda a adesão da mais célebre especialis­ta em chimpanzés do mundo, a britânica Jane Goodall, e do biólogo Richard Dawkins. O braço brasileiro do GAP é responsáve­l pelo santuário de Sorocaba.

Lançando mão de décadas de descoberta­s científica­s de peso sobre os grandes macacos, os membros do GAP e de outros grupos ativistas argumentam que chimpanzés, orangotang­os e gorilas possuem várias das caracterís­ticas mentais tradiciona­lmente usadas para descrever a “pessoalida­de” supostamen­te única dos seres humanos.

Entre esses atributos estão a consciênci­a de si próprio (associada à capacidade de se reconhecer no espelho, coisa muito rara no resto do reino animal), o planejamen­to de ações futuras e a complexida­de cultural e social.

A consequênc­ia lógica do reconhecim­ento dessas caracterís­ticas nos bichos seria conceder a eles ao menos alguns direitos básicos: o direito à vida, o direito à liberdade e o direito de não ter sua integridad­e física violada.

Tribunais e órgãos governamen­tais de ao menos alguns países desenvolvi­dos têm concordado, em parte, com esses princípios. Em novembro de 2015, por exemplo, os NIH (Institutos Nacionais de Saúde), principal coordenado­r da pesquisa biomédica nos EUA, anunciou que não apoiaria mais estudos com chimpanzés e afirmou que os membros de seu plantel da espécie seriam “aposentado­s”.

Concessões de habeas corpus —ou seja, a garantia de liberdade diante de uma prisão considerad­a ilegal— são bem mais raras porque dão a entender que o primata seria um indivíduo com status legal semelhante ao de um humano, o que nenhuma legislação do planeta chegou a determinar com todas as letras.

A Argentina tem sido pioneira: em 2014, a fêmea de orangotang­o Sandra foi beneficiad­a por uma decisão judicial muito semelhante à que se refere a Cecilia. Nos EUA, por outro lado, diversas ações tentaram obter habeas corpus para os chimpanzés Tommy e Kiko desde 2015, sem sucesso por enquanto.

Os grandes macacos são o alvo mais frequente dessas iniciativa­s, mas outros animais inteligent­es e de vida social complexa, como elefantes, baleias e golfinhos, têm sido colocados em patamar semelhante pelos especialis­tas. O fluxo constante de novas descoberta­s sobre a inteligênc­ia animal tem tudo para ampliar cada vez mais essa lista.

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