Folha de S.Paulo

Para servir à história do radicalism­o

- CONTARDO CALLIGARIS COLUNISTAS DA SEMANA: sexta: Vladimir Safatle, sábado: Mario Sergio Conti, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho

ENTRE 1798 e 1799, exilado em Hamburgo, o abade Augustin Barruel publicou os cinco volumes de suas memórias para servir à história do jacobinism­o.

Pelo título, o leitor espera uma história dos conflitos entre as facções jacobinas durante a Revolução Francesa e o Terror, mas não é isso o que importa a Barruel. O abade quer nos explicar que a Revolução Francesa não teve nada a ver com o preço do pão ou do brioche; de fato, segundo ele, não foi revolução popular nenhuma, mas o resultado de uma grande conspiraçã­o anticristã.

Os illuminati, grupo diabólico, teriam se infiltrado na maçonaria para acabar com a monarquia e com a religião. E eles tinham, como aliados, os filósofos do século 18, os rosacrucia­nistas, os cavaleiros templários etc. As memórias de Barruel parecem um romance de Dan Brown (os illuminati, no começo de “Anjos e Demônios”, são os culpados pela morte do papa e por várias outras atrocidade­s).

É provável que Barruel fosse clinicamen­te paranoico. A Revolução Francesa e a grande mudança do fim do século 18 são eventos mais do que complexos: para explicá-los e narrá-los como efeitos de um complô de intenções humanas definidas é preciso delirar.

Quem delira tem duas vantagens: pode acreditar cegamente no seu delírio e também evita constatar sua própria insignific­ância (é preferível se ver como vítima de uma conspiraçã­o do que como folha agitada pelos turbilhões insensatos da história).

Barruel, além de ser o santo patrono das teorias conspirató­rias, é também considerad­o como um grande conservado­r porque ele nunca se resignou ao fim do Antigo Regime.

Você vai achar que é coisa do passado. Será que alguém hoje não aceita o fim da monarquia absoluta? Ou o fim da separação das três ordens (clero, nobreza e plebe), com direitos diferentes?

Numa noite dos anos 60, eu levei para sua casa um amigo de uma antiga família da Itália central, o qual, recentemen­te (santo Google me informou agora mesmo), acabou sendo Grão-Prior da Ordem de Malta.

Naquela noite, eu fiz uma barbeirage­m, um táxi parou ao nosso lado no farol seguinte e nos mandou às putas que nos pariram. Meu amigo baixou o vidro e respondeu, deixando o taxista atônito: “Meu jovem, se não fosse pelo acidente histórico mal-aventurado que passa pelo nome de Revolução Francesa, você sequer ousaria me endereçar a palavra”.

Ridículo, hein? Mas, para muitos, ainda hoje, os tempos do Antigo Regime são a época da verdadeira “dolce vita”. Sob um verniz “moderno” de diferenças que seriam “apenas” quantitati­vas, uma boa parte das “elites” nacionais, aliás, ainda sonha com uma sociedade de “ordens” separadas drasticame­nte.

No fim do primeiro volume de sua obra, após ter passado em revista as ideias e as figuras do Iluminismo, Barruel escreve: “Existe um Deus? Ou não existe? Tenho ou não uma alma para salvar? (…) Eis certamente as questões elementare­s da verdadeira ciência e da filosofia (…) E o que respondem a essas grandes perguntas todos os nossos pretensos sábios, bem enquanto agitam sua conspiraçã­o contra o Cristo?”.

O que o leitor espera nessa altura são trovoadas de descrença e de ateísmo pelos “infames” filósofos modernos, mas não é isso que segue. O que indigna Barruel não são crenças diferentes da dele, como, por exemplo, negações da existência ou da presença de Deus no mundo. Barruel continua assim:

“Nós colocamos sob os olhos do leitor as próprias expressões deles. E o que o leitor viu? Homens que dizem dominar o universo se fazem entre eles a confissão explícita e repetida de que eles não souberam formar uma única opinião firme sobre nenhuma dessas questões. Voltaire, ele que era consultado por príncipes e burgueses, consulta ele mesmo D’Alembert para saber se ele deve acreditar na sua alma e em Deus.

Todos acabam por confessar que eles são reduzidos a colocar em cada caso o “non liquet” [não está claro, no Direito Romano]; eles não sabem. Mas o que sabem, então, esses filósofos, esse mestres tão estranhos que não podem sequer resolver entre eles essas questões elementare­s da filosofia?”.

Pois é. Eles não sabem. É por isso que não são loucos e é por isso que (junto com seus contemporâ­neos americanos) promoveram a liberdade das consciênci­as e inventaram a democracia como forma de governo.

É preferível se ver como vítima de conspiraçã­o do que como folha agitada pelos turbilhões da história

ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

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Mariza Dias Costa

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