Folha de S.Paulo

Carta aberta ao rapaz da padaria

- TATI BERNARDI COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

ONTEM VI um rapaz que muito me agradou na padaria próxima a minha residência e pensei: óbvio que ele vai cruzar olhares sedutores comigo. Sou gata, sou poderosa, sou loira falsa. Pensei também: óbvio que ele vai adorar ter seus mamilinhos másculos e sua bundinha musculosa encarados pelo meu deleite. Quem, em sã consciênci­a, não ficaria lisonjeado com o meu desejo? Ou ainda: que jovem heteronorm­ativo não imploraria, enquanto escolhe um iogurte com “dan regulares”, pra ser patolado por uma desconheci­da?

O moço preferiu escolher pães docesanota­rminhaexis­tênciaeeu,não podendo conter a fúria de ser ignorada, tampouco controlar a verdade mamífera que brotava violenta em meupalato,bradei,praquemqui­sesse ouvir: “VIADO”! Foi legal ter dito isso? Não. Me arrependo? Muito. Eu errei.Masestavai­mersaemmeu­personagem de colunista fêmea branca opressora, espero que entendam. Não era eu, era o meu eu-lírico.

A culpa não é minha e sim da minha geração. Minha avó, que Deus a tenha, me ensinou desde muito cedo: podendo esmagar sacos escrotais pela vizinhança ou ainda dar dedadas anais pelo bairro, não se reprima! Os homens adoram. Eles só saem de casa usando camisas com alguns botões semiaberto­s e um tantinho da cueca aparecendo porque QUEREM justamente que alguém lhes torça o pênis, eles não só desejam desesperad­amente que uma desconheci­da lhes atoche uma unha vermelha e comprida, como MERECEM que isso aconteça.

Minha mãe, vendo-me tantas vezes sugar minha própria saliva em desmedido prazer, com a cabeça pendurada pra fora do meu carrão, buzinando para (e bolinando em pensamento) os universitá­rios no ponto de ônibus, apenas sorria e balançava a cabeça: essa é fêmea! Ela nunca me ensinou que isso não se faz. Ela, sempre pude notar com muita clareza, sentia profundo orgulho: “Minha filha não é como essas sapatoninh­as que andam por aí, essa é mulher de verdade”!

Ah, querido rapaz da padaria! Não foi apenas a minha mão direita que agarrou seu pênis e o espremeu até que você clamasse por socorro. Foi também a mão esquerda e uma infinidade de desculpas. Esmagar seu membro não foi invenção exclusiva de minha mente doentia. Foi a década em que nasci. Os avós que tive. Os pais que a vida me deu. As professora­s de balé, professora­s do primário. Tanta gente que você nem imagina. Eu te peço perdão, mas, se não bastar, reclame com quatro décadas e minhas tias.

Nomeutempo­eradiferen­te.Eufui criada pra achar que qualquer homemamari­asergrosse­iramenteac­ariciado em plena panificado­ra. Sou fruto de dezenas de gerações de mulheres que passaram adiante o que acabou se tornando um dos meus mantras: “Quando, no mercadinho, umhomemaba­ixarprapeg­arumengrad­ado de cervejas, aproveite para conferir como ele fica de quatro e, se puder, sorva a língua com luxúria”. O que está acontecend­o com o mundo que ninguém mais ri disso?

Estimado rapaz da padaria, um dia terei filhos. É esse mundo que eu quero pra eles? Não! Entendi, finalmente, que são tempos novos e melhores. Obrigada por tudo e desculpa qualquer coisa.

Esmagar seu membro não foi invenção exclusiva de minha mente doentia, foi a década em que nasci

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