Folha de S.Paulo

Quando viajava, abria os colchões em que dormia para ver como era dentro. Des-

- ANA ESTELA DE SOUSA PINTO

DE SÃO PAULO

Parece que estou sentindo o cheiro do tecido do primeiro colchão que coloquei na carroça para fazer entrega.

Era listrado de vermelho e bege, um gorgurinho barato que vinha com muito cheiro de tinta, deixava a gente impregnado. Mas meu coração ia acelerado, aquela emoção de finalmente ter algo por conta própria, se libertar.

Sabia que ali seria o começo de uma longa jornada.

Sou o quinto de oito filhos. Ainda moleque, estudava pela manhã, e à tarde meu pai me colocou num convento de padre para ajudar a lavar pratos, descascar batatinha. Para a gente aprender a se virar.

Quando perdeu o filho mais velho, de tanto sofrimento ficou doente. Então, aos 15 anos, fui trabalhar no armazém que ele tinha com um irmão. Acho que vem dali essa paixão de querer ter um negócio próprio.

Mas meu tio achou melhor vender o negócio, e era difícil emprego em Itu para quem não tivesse profissão. Na cidade havia uma mecânica e fundição, e eu sabia onde morava o dono. Passei a ir esperá-lo no portão na hora do almoço, para pedir emprego.

Depois de umas três vezes, ele me arrumou uma vaga de fundidor, um trabalho pesado e sujo. Por sorte perceberam que eu era bom de matemática e logo virei fresador. DE VOLTA À ESCOLA Tinha parado de estudar no quarto ano, como era a praxe. Só os filhos de pais privilegia­dos é que continuava­m. Aos 20, resolvi voltar à escola.

Na minha classe encontrei um amigo que trabalhava numa fábrica de colchões, e resolvemos montar uma nossa.

Ele entrou com a prática e eu com o capital —um barracão em que meu pai investiu, do lado da nossa casa. Também foi ao Banco do Brasil e abriu um crédito pra gente.

Estava me formando no quarto ano do noturno.

Até então, tinha uma facilidade danada de estudar, porque era empregado. Depois, até passar de ano era duro. Não sobrava tempo, usava a cabeça demais.

Nosso maquinário no começo era bem rudimentar, a gente improvisav­a muito. Não era sempre que tinha encomenda de colchão de mola, por isso usávamos o tempo fabricando os de capim. De capim, o que fizesse saía.

Os primeiros eu vendi para amigos. Também via no jornal as proclamas de quem ia se casar, passava e oferecia. Levava na carroça, puxada pelo Periquito, um cavalo branco que meu pai tinha desde minha infância.

Em cinco seis meses, já tínhamos dez funcionári­os. Logo adaptei uma carretinha na Vespa e aposentei o cavalo.

Quando o negócio vai bem, pode haver algum atrito, mas a sorte é que contratamo­s uma secretária que administra­va o dinheiro, e a fábrica andava direitinho. Meu colega é um grande amigo até hoje. Fomos sócios por 36 anos. É uma vida, né?

Sou um cara bem medroso. Sabia que era limitado e que, se quisesse ir para a frente, tinha que buscar. Todo curso que aparecia eu fazia.

Nos anos 1970, a espuma veio com tudo e resolvemos passar a fabricá-la em 1977. O preço dita a norma de tudo. Se continuass­e comprando, não tinha preço. No Brasil, indústria tem que produzir o que puder, senão é imposto em cima de imposto. TESOURA NOS COLCHÕES costurava, mas costurava de novo! Hoje em dia não, porque, se for costurar, não tenho mais paciência [risos].

Sempre tinha coisa para aprender e adaptar, algo que não mexesse na qualidade, mas melhorasse o custo. Hoje, já não precisa, todo o mundo fabrica do mesmo jeito.

Espuma era uma novidade no Brasil e deu uma explosão de mercado. A gente fazia a fábrica trabalhar dia e noite. Se uma máquina quebrasse de madrugada, os funcionári­os tinham ordem para ir bater na janela, e eu ia arrumar. Era toda semana. Eu não ligava muito. A mulher reclamava mais [risos].

Como havia poucas indústrias em Itu, a proximidad­e entre clientes e fornecedor­es era mais fácil. Fizemos uma parceria com as Lojas CEM, que tinha cinco ou seis lojas. Hoje tem 250 e somos seu maior fornecedor de móveis.

Nesse tempo, atravessei várias crises. Em 1977, um incêndio queimou boa parte da fábrica de espuma.

Em 2002, tinha comprado a parte do meu sócio, estava numa situação financeira bem difícil. O Lula tinha apenas entrado, o dólar disparou de tal maneira que todos ficaram com medo. Meu sócio me ofereceu a parte dele por uma prestação baixa. Acho que eu estava mais preparado para assumir o risco.

Nesse momento, a gente mudou o departamen­to comercial, arrumamos compradore­s fortes e nos recuperamo­s. De repente, em 2004 perdemos o maior cliente, de uma hora para a outra.

Mas a gente cria tanto envolvimen­to com o mercado que sabe que uma porta fecha, mas outra abre. Começamos a focar mais lojas grandes de São Paulo e na CEM. E compramos uma máquina de fazer molas que deu uma arrancada importante. PULO DO GATO Nunca pensei: “Ah, agora estou bem de vida”. Mas hoje eu vejo que estou bem. Graças a Deus, meus filhos e genro vieram aqui e colocaram a empresa em outro patamar.

Para fazer esta fábrica nova, peguei um financiame­nto do BNDES, a taxa era boa, mas parecia uma loucura. Já fazia contando com eles, porque, se fosse só por mim... Felizmente está quase no fim.

Compramos um equipament­o de fazer espuma que é o melhor do país, poucos têm igual. A nova fábrica começou a funcionar há dois anos e meio, sem inauguraçã­o. A festa, mesmo, fizemos agora, nos 50 anos da empresa.

Mesmo com tanta variedade de produtos, ainda tenho um favorito, o Standard, um colchão popular feito das aparas. Eu gosto daquilo ali. Era uma coisa praticamen­te perdida e se transforma em outra, num colchão bom.

Não sei onde vai ser a próxima fábrica. Isso agora é problema deles. Só acho que temos que comprar um terreno para quando precisarmo­s ampliar a produção. PAÍS DE PESADELOS Atualmente durmo bem, mas, quando não tinha como pagar as contas no dia seguinte, acordava de madrugada e ficava remoendo. Neste país, infelizmen­te, tem disso. Nestes 50 anos, não me lembro de ter falado “Olha, agora estamos bem”.

Uma coisa que me deixa triste é que no meu tempo havia muito jovem com disposição para arriscar e montar empresas. E vi muitos amigos meus pararem no meio do caminho, mesmo com vontade e determinaç­ão.

No meu sindicato, havia 35 empresas. Hoje ficaram duas, para ver a dificuldad­e. É um país em que a gente precisa ter muita fé e ser muito perseveran­te. Há dias em que tem que aproveitar e ter reserva, porque não sabe no mês que vem o que vai vir.

Mas, na vida, se a gente achar que está indo bem e se acomodar, é porque está indo para trás. No mercado também, se não estiver crescendo, está indo para trás. É o que nos ditou chegar até aqui. FATURAMENT­O Não divulga FUNCIONÁRI­OS 450 MARCAS ApoloSpuma, InterSprin­g, Carolina e Pikolin PRINCIPAIS CONCORRENT­ES Ortobom, Flex, Celuplas Castor,

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