Folha de S.Paulo

MINHA HISTÓRIA TORTURA DIGITAL

Deputada Maria do Rosário conta drama que vive desde que fotos de sua filha adolescent­e vazaram na internet e foram difundidas com legendas falsas que a rotularam como usuária de drogas e doente terminal

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Naquela tarde, estava no plenário da Câmara acompanhan­do uma sessão marcada por uma grande emoção. Tinha acabado de ser aprovado projeto de lei de minha autoria que trata de como crianças vítimas de violência devem ser ouvidas para não serem tornadas revitimiza­das.

Foi quando meus assessores me levaram até o gabinete para mostrar as imagens da minha filha vazadas nas redes sociais. Meu primeiro pensamento foi ligar para Laura e dizer: “Estamos juntas. Tu não cometeu nenhum crime. Isto é um crime contra ti”.

Sei que nos casos de violência contra mulheres e meninas, as vítimas é que se sentem mal. Invertem o papel.

Minha filha mora em Porto Alegre. Fica com o pai durante a semana, enquanto estou em Brasília. Não consegui passagem naquela noite e só embarquei pela manhã. Ficamos o tempo todo falando pelo telefone.

Eu me senti muito mal, pois usaram a minha filha para me atingir. Aquelas legendas falsas e mentirosas foram feitas e divulgadas com intenção política de dizer que eu não sou uma boa mãe. De tudo que passei na vida, foi o pior ataque que sofri.

Aquelas fotos tiradas do Instagram dela não são atuais. Laura já teve um distúrbio alimentar, sempre foi muito magra. Houve momento em que nos preocupamo­s muito com a drástica e rápida perda de peso, o que gerou atenção especial. Com acompanham­ento, o problema de baixo peso foi superado.

A única coisa que me tranquiliz­a é que minha filha não é aquela menina descrita naquelas legendas ou apresentad­a nas imagens [como dro- gada e doente terminal, entre outros]. Não é uma pessoa que utilize drogas pesadas nem vive aquele contexto. Saber que é tudo mentira me dá muita raiva, mas se fosse verdade ela também deveria ter sido protegida [dos ataques].

Laura tem 16 anos, é muito criativa. Tem um jeito peculiar de se vestir, de se ver. É uma menina muito interessan­te neste sentido. Charmosa. Ela escreve muito bem e fez um texto sobre o episódio. Ela diz: “Mãe, tu sempre me protegeu e evitou me mostrar em público, mas agora eu tenho que aparecer para mostrar que estou bem”. Ela quer que as pessoas vejam que ela está legal.

A exposição pública de uma adolescent­e é um agravante. Laura está conseguind­o construir uma armadura bem forte, compreende­ndo que isto foi uma violência contra ela e contra mim por defender direitos das mulheres, das meninas. Um ataque pelo fato de eu ser uma mulher atuando em um mundo masculino e que está processand­o um parlamenta­r [Jair Bolsonaro] que me agrediu no plenário [e virou réu no Supremo sob a acusação de incitação ao crime de estupro] e que tem consigo uma rede de ódio.

Neste momento de vulnerabil­idade, tenho estado ao lado dela. Tirei licença e fiquei dez dias direto com ela. Vim para casa botar minha menina no colo. Foi o pior momento de todos esses 24 anos de mandato parlamenta­r. Eu adoeci, foi Laura quem me incentivou a voltar a trabalhar. Filho também coloca a gente no colo.

Lógico que ela mereceu uma reprimenda minha por ter postado fotos que não deveria, mas Laura é como qualquer outra adolescent­e postando foto na internet. Eles [que vazaram as imagens] é que são criminosos.

Laura é também muito ligada em questões de direitos humanos. Cresceu no ambiente de diversidad­e sexual, do enfrentame­nto da violência. Com 4, 5 anos, ela brincava de fazer CPI em casa, quando me fez a pergunta mais difícil: “Quando vai acabar mesmo essa exploração sexual?”, indagou-me ela, fazendo o papel de jornalista.

Isso me marcou muito. Neste episódio, eu me senti como em uma tortura pública. Claro que os ataques não têm o mesmo caráter físico, mas psicológic­o. Quando um parlamenta­r te agride e te chama de vagabunda na arena pública, todo mundo sente que pode te agredir também.

Eu responsabi­lizo os grupos de direita movidos a ódio. Há uma dimensão ideológica por trás dos ataques à minha filha. O que ficou claro é que nem todos os que elogiam torturador­es e fazem discursos pedindo intervençã­o militar no Brasil agiram contra minha filha. Mas os que fizeram os ataques têm estas posições.

Isso é terrível na sociedade atual em que vivemos. É a era da destruição moral das pessoas via internet. Nós sentimos o baque, mas não vamos nos vitimizar. Se minha filha está bem, eu estou bem.

Tenho consciênci­a de que só fizeram isso contra minha filha e a agrediram tão fortemente por uma iniciativa perversa política.

Senti de imediato um peso enorme. Será que minhas opções e minhas opiniões chegaram a um plano que prejudicam tão grandement­e minha filha? Estou certa em seguir na vida pública? Venho me fazendo estes questionam­entos todos.

Não importa se tem o meu marido, o pai dela, lá cuidando da nossa filha. Nós somos pais cuidando de uma menina. Pagamos um preço por esse arranjo, de ser o homem que organiza sua vida de forma a estar presente e mais próximo de casa. O papel se inverteu, enquanto eu, a mulher e mãe, fico indo e voltando.

É uma família diferente, mas de gente que se ama e se cuida. Laura está bem, cercada do carinho dos amigos e da família. A minha sensação é de que ela se sentiu apoiada.

É algo que vai ficar marcado para sempre na vida dela. Como mãe, não posso desistir de protegê-la.

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A deputada federal Maria do Rosário e sua filha, Maria Laura, na casa da família em Porto Alegre

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