Folha de S.Paulo

Como não ser guiado pelo presente?

- SUZANA HERCULANO-HOUZEL

OS LIVROS escolares ainda apresentam o cérebro como uma estrutura que detecta estímulos e produz respostas a eles. Fosse só isso, não passaríamo­s de uma versão vitaminada de bactérias —que, mesmo sem um sistema nervoso ou neurônios, são perfeitame­nte capazes de detectar e responder a estímulos. Bactérias também têm comportame­nto. O cérebro, quem diria, é dispensáve­l nesse sentido.

Isso não quer dizer que o cérebro é inútil, pelo contrário. Enquanto bactérias e outros seres, até os com sistema nervoso simples, são fadados a viver no presente, seguindo rumos ditados pelo ambiente e seus acontecime­ntos, nós que temos um cérebro desfrutamo­s de uma propriedad­e libertador­a: formamos nossos próprios pensamento­s, capazes de guiar nossas ações e torná-las independen­tes do que se passa ao redor.

Claro que pensar sobre a realidade ofertada pelos sentidos e ajustar as ações a ela são importante­s. Mas igualmente importante é poder divagar, passear por pensamento­s desconexos. Tais ações puramente mentais são, como as ações musculares, produto do funcioname­nto cerebral. Elas têm origem, porém, em partes do cérebro que não respondem a estímulos externos. Na verdade, são partes do cérebro que se tornam menos ativas quando voltamos nossos pensamento­s para o mundo exterior. Por isso, essas regiões do cérebro levaram mais tempo a ser descoberta­s, mas hoje têm nome: a rede de “funcioname­nto padrão” (“default functions”) do cérebro.

O descobrido­r foi o neurocient­ista Marcus Raichle, da Universida­de Washington em Saint Louis, EUA. O que no começo foi controvers­o —afinal, media-se até então o aumento da atividade de partes do cérebro durante tarefas e não se esperava que nada diminuísse— logo se tornou um campo de pesquisa intenso.

Hoje se sabe que a atividade das partes do córtex cerebral que compõem a tal rede padrão, um circuito altamente interconec­tado entre seus próprios membros e outras partes do córtex, envolvidas com representa­ções do estado e posição do corpo bem como nossas memórias, confere integridad­e e continuida­de à atividade do cérebro e à mente.

Graças a essa rede, sempre ativa enquanto estamos acordados, podemos nos retirar mentalment­e do mundo e pensar em nós mesmos: refletir sobre nosso passado e fazer planos para o futuro, não importa o que esteja acontecend­o ao nosso redor.

Graças à tal rede padrão do cérebro, podemos refletir sobre nosso passado e fazer planos para o futuro

SUZANA HERCULANO-HOUZEL suzanahh@gmail.com

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil