Folha de S.Paulo

É difícil olhar a escravidão, seja você branco ou negro

COM ‘A FERROVIA SUBTERRÂNE­A’, ROMANCE SOBRE FUGA DE UMA ESCRAVA ADOLESCENT­E, ESCRITOR GANHOU ONTEM O PULITZER

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certas a cada dia já é difícil o bastante; se você não sabe o que vai acontecer, a dificuldad­e dobra. A cada dia acordo e, por exemplo, descrevo o pai de Ridgeway, a ferraria. São duas páginas, um bom dia de trabalho. Descrevo Ridgeway, e como ele vai para Nova York, mais uma. Às vezes você só consegue produzir uma página, às vezes consegue fazer duas coisas diferentes. Mas me imponho uma tarefa.

Tento produzir oito páginas por semana. Hoje em dia, esse parece ser o ritmo de uma boa semana. Tenho que pegar as crianças na escola, e há dias menos produtivos, de vez em quando. Se tenho uma consulta médica às 13h, penso que nem vale a pena começar a escrever. Meço minha vida com base em quanto tempo vai demorar para que eu acabe a próxima coisa horrível que tenho de fazer. Um romance é uma dessas coisas. Estou oito páginas mais perto de terminar o trabalho. E depois tiro 18 meses de folga, para lecionar, promover meus livros ou seja lá o que for —ficar curtindo minha rabugice. Certa vez, você disse: “não considero a história muito confiável. Há a história branca e a história negra”. Você ainda sente isso, após este livro?

Com sorte, o livro talvez possa ser um acesso para pessoas diferentes pensarem a história de maneira diferente. Não tenho um público em mente ao escrever. Estou só tentando resolver um problema meu, com esses livros.

Mas quanto a esse tema específico —escravidão e raça nos Estados Unidos—, sim, estamos todos implicados nisso. E creio que a estrutura do livro permita uma conversaçã­o diferente sobre a história.

A seção sobre a Carolina do Norte, por exemplo, foi inspirada por Harriet Jacobs. Quando as pessoas pensam sobre alguém que se esconde no sótão para escapar a um regime opressivo, pensam em Anne Frank. Como posso falar sobre a opressão dos negros em 1850, e sobre a supremacia branca em 1850, de modo que isso também fale sobre a supremacia branca nazista?

E agora não estamos falando apenas de escravidão, mas sobre toda forma de demonizaçã­o do outro em épocas diferentes —como isso não muda. Há personagen­s brancos malévolos no livro, vilões negros, heróis negros.

Creio que, se a sua família já vivia nos Estados Unidos na época da escravidão, é difícil, como branco, contemplar o fato de que seu ta-ta-tataravô estuprou, torturou e abusou de pessoas para ganhar a vida e transferiu esse conhecimen­to aos filhos dele: “É assim que se ganha a vida”.

Se você é negro e está confortave­lmente instalado na classe média, se representa a terceira geração de sua família a ter curso superior, se você “encontrou o sucesso”, de acordo com o padrão norteameri­cano para isso, de que forma deve contemplar a imensa brutalidad­e a que seus ancestrais foram submetidos?

A escravidão é difícil de contemplar, seja você negro ou branco. Acho que se esse livro, por causa da maneira pela qual manipulo a história, permite que as pessoas pensem diferente ou entendam diferente a nossa história compartilh­ada, então ele é bom. JOHN FREEMAN

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