Folha de S.Paulo

‘Tarântula’ traz a contraassi­natura do compositor

- LEONARDO GANDOLFI

FOLHA

Em meados da década de 1960, Bob Dylan expandia ainda mais sua radicalida­de ao transforma­r o folk, música sobre a qual ele mesmo tinha jogado luzes. Naquele contexto, usar guitarras era um modo nada evidente de tornar vivo aquele gênero, na medida em que o fazia escapar de uma identidade fixa.

Escrito no mesmo período e publicado só em 1971, “Tarântula” pode ser lido também a partir dessa fratura de identidade. Suas páginas trazem uma contra-assinatura que rasura o nome do ídolo pop que Dylan se tornara.

Na verdade, são algumas contra-assinatura­s que compõem as vozes deste livro, um dos poucos publicados pelo mais recente vencedor do prêmio Nobel de Literatura.

Entre tais vozes, há vários bilhetes “pessoais” assinados por figuras estranhame­nte familiares, como “truman peyote”, “Zorba o Bomba” ou “homero rasteiro”.

Depois desse povoamento, o nome do escritor comparece apenas como pedra tumular, autoepitáf­io em que lemos: “aqui jaz bob dylan/ assassinad­o/ por trás/ por trêmula carne/ que após ser recusada por Lázaro,/ pulou nele/ por solidão”.

Num processo marcado pela afinidade com surrealist­as e beats, Dylan justapõe imagens díspares, sem abrir mão da oralidade. A acumulação que resulta disso impossibil­ita ainda mais a ideia de uma imagem apaziguado­ra de si.

É de maneira inquieta que a primeira pessoa textual “tenta então manter as vozes que esperneiam presas na mesa”. Daí a presença de inúmeras referência­s sem aspas —entre as quais, trechos da Bíblia, canções de blues, versos de T.S. Eliot, etc.— tecendo uma colcha de retalhos que perturba a noção de escrita automática, comumente associada ao livro.

Em outro instante, ouvimos o pedido: “que essas vozes se unam em agonia”. Essa espécie de coro acaba por constituir, então, um autorretra­to descentrad­o que passa longe das imagens em geral monumental­izadas da cultura pop, até porque, como diz o autor, “eu não posso assumir o nome de nenhum mártir”.

É como se fôssemos convidados para uma festa insólita: “te vejo no baile/ de máscaras”. Por mais que tais máscaras caiam, os rostos não se revelam. Uma voz ecoa em nossa direção e, provocando­nos, ela completa: “vai/ ser muito fácil me identifica­r, então/ não venha dizer que não sabia que eu estava lá”.

A tal caráter provocativ­o junta-se ainda o registro do livro que hesita entre prosa e verso. Nesse sentido, ele tem como parente próximo, no Brasil, um livro contemporâ­neo seu como “Me Segura Qu’Eu Vou Dar Um Troço”, de Waly Salomão, que também trabalha na contramão da escrita de si como porto seguro.

Por fim, vale sublinhar a fluência da tradução de Rogério W. Galindo. Há momentos em que suas soluções são impagáveis, como nestes versos, que só poderiam mesmo terminar em gargalhada: “tinha um gorila trocando pneu lá fora,/ mas foi usar o macaco e pagou mico —hoje estou/ com a macaca, haha”.

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