Folha de S.Paulo

Carnificin­a sem autor

TJ manda julgar novamente envolvidos no massacre do Carandiru, em saga que se arrasta com a complacênc­ia do aparelho do Estado

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Quase 25 anos depois do massacre do Carandiru, permanece nebuloso o desfecho de sua saga de barbárie e impunidade.

No capítulo mais recente, cuja repercussã­o foi abafada pelo alarido em torno dos inquéritos da Lava Jato, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou nesta terça-feira (11) novo julgamento para os policiais militares envolvidos na chacina de 111 presos da antiga Casa de Detenção de São Paulo.

Dependesse apenas do desembarga­dor Ivan Sartori —para quem houve não mais que “legítima defesa”—, todos já teriam sido absolvidos. Outros quatro magistrado­s votaram por novos júris, em data incerta e desconheci­da.

A recusa renitente em assumir responsabi­lidades e apontar culpados marca o processo desde o próprio dia da mortandade, a maior da história penitenciá­ria do país.

Em 2 de outubro de 1992, véspera de eleições municipais, o governo paulista não divulgou mais que dados parciais —teriam morrido ao menos oito detentos— sobre a rebelião reprimida no Carandiru.

Depois que as reais dimensões do episódio foram reveladas, o então governador Luiz Antônio Fleury Filho (PMDB) relutou em tomar providênci­as —“Eu também sou polícia”, disse—, mas acabou por exonerar seu secretário de Segu- rança Pública (assumiu o posto um certo Michel Temer).

Na Justiça, a primeira condenação ocorreu apenas em 2001, quando o coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação, foi sentenciad­o a 632 anos; em 2006, a decisão seria revertida pelo TJ.

Em júris realizados em 2013 e 2014, 74 policiais receberam penas que variavam de 48 a 624 anos de detenção, podendo recorrer em liberdade; os julgamento­s foram anulados em setembro de 2016.

Reconheça-se que o caso é intrincado. A PM teve de agir sob extrema pressão, em uma penitenciá­ria superlotad­a, sem iluminação nem conhecimen­to sobre o eventual poder de fogo dos rebelados.

Mais ainda, há controvérs­ia jurídica em torno da possibilid­ade de condenar os réus sem que cada conduta individual tenha sido caracteriz­ada na acusação.

Entretanto o que se sabe sobre a matança é por demais eloquente: cada detento morto recebeu, em média, cinco tiros, enquanto nenhum policial foi alvejado; sobreviven­tes foram forçados a tirar as roupas e a empilhar os corpos; a cena do crime foi alterada.

Diante de tais evidências, a Promotoria sustentou que os participan­tes da ação têm responsabi­lidade pelo resultado final, tese aceita pelos jurados, mas não pelo TJ.

Inadmissív­el, sem sombra de dúvida, é que uma carnificin­a de múltiplos autores torne-se uma espécie de crime perfeito, amparado pela complacênc­ia corporativ­a do aparelho do Estado, contra pessoas que estão sob sua custódia.

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