Folha de S.Paulo

FARINHA COM AÇÚCAR...

- VALMIR SANTOS

ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

O educador Paulo Freire (1921-1997) viu e ouviu atentament­e o cotidiano de populações empobrecid­as para conhecer seus saberes. Era a partir dessa disponibil­idade que o processo de alfabetiza­ção deslanchav­a.

A desconfian­ça das palavras prontas gira a tramela da cultura para vislumbrar outras gramáticas da escrita e da fala. O rap que o diga.

Esse pensamento é central em “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, a leitura do Coletivo Negro para aquilo que os Racionais MC’s versam e conversam na discografi­a que chega aos 30 anos em 2018.

O homem jovem ou adulto negro da periferia é retratado nas letras do grupo a partir do seu pedaço, a zona sul de SP, e da realidade histórica do país em relação a racismo e violência institucio­nalizados.

Idealizado­r, dramaturgo e atuante do espetáculo, acompanhad­o de cinco músicos, Jé Oliveira carrega para a cena a carnificin­a da dor pelos assassinat­os, sobretudo em conflitos com a polícia.

Mas a essência do trabalho está na maneira como conjuga rito fúnebre e afirmação da vida enquanto ato criador. A capacidade de gerar por meio daquilo que lhe falta —entrelinha freiriana— condiz com os relatos que Oliveira colheu junto a 12 homens negros de diferentes idades (vendedor de livro, músico, modelo, poeta, professor, artista etc .).

O narrador é conduzido à ancestrali­dade dos avós. Ao prazer da comida brotada da roça. À carestia dentro de casa com a tática da farinha de mandioca com açúcar para enganar a fome. Às brincadeir­as de polícia e ladrão ou mãe da mula na rua de barro da cidade grande.

À descoberta do gosto pela leitura via capa de disco, gibi e livros que fazem da rima o remo, para usar um dos jogos de aproximaçã­o recor- rentes no texto.

Jé Oliveira encontra no drama cantado dos Racionais a subjetivid­ade masculina latente para conceber um manifesto poético.

O disco “Raio X do Brasil” (1993) abre com a voz de Edi Rock saudando a liberdade de expressão: “Você está entrando no mundo da informação, autoconhec­imento, denúncia e diversão”.

“Farinha...” acrescenta mais um substantiv­o, a poesia, também um recurso para contrapor-se ao ódio.

O plano simbólico dialoga com a concretude da existência. Os músicos estão abrigados sobre pórticos cenográfic­os de casebres. Evocação indireta ao Jardim Zaira, populoso bairro de Mauá (SP).

Oliveira é o homem singular e o narrador pensante em tempos de desilusão. A base musical intercala composiçõe­s próprias e trechos de gravações dos Racionais em pick-ups comandadas por DJ.

A musicalida­de intensa dá ao legado dos Racionais a superação de obstáculos da vida por meio da palavra em seu sentido expandido. AVALIAÇÃO muito bom

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