Folha de S.Paulo

Um outro fim do mundo é possível

- VLADIMIR SAFATLE COLUNISTAS DA SEMANA: sábado: Drauzio Varella, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris

“O QUE temos no Brasil não é um negócio de cinco, dez anos. Estamos falando de 30 anos atrás”. Foi bom, Emílio Odebrecht, que você tenha lembrado disso em sua delação premiada. Pois durante os últimos anos o povo brasileiro teve que assistir ao espetáculo patético de corruptos com ares de indignação cívica acusando corruptos, torcedores de corruptos saindo às ruas para clamar contra a corrupção.

Tudo isto para chegar neste momento catártico e todos os lados da Nova República serem expostos em suas relações incestuosa­s com o empresaria­do nacional.

O ilibado e endeusado pela imprensa local Fernando Henrique Cardoso, o defensor dos oprimidos Lula, o santo Alckmin, a guerrilhei­ra Dilma, o indignado Aloysio Nunes, seu amigo e presidente natural Serra, os operadores do PT, os operadores do PSDB, os negociador­es do PMDB, os trânsfugas da ditadura do DEM: em suma, toda a fauna da casta política brasileira no mesmo banco dos réus.

Os mesmos que ocupam os espaços na imprensa para pregar austeridad­e e destruição dos direitos dos trabalhado­res são os que pilharam os cofres públicos de forma aberta e sem pudores. Os mesmos que exigem dos trabalhado­res que trabalhem 49 anos para se aposentar de forma integral deram ao Brasil a honra de ter 24 de seus 81 senadores como alvo de inquérito no STF.

Os mesmos que fecham escolas e deixam apodrecer universida­des sentavam à mesa fausta das negociaçõe­s e levavam para casa milhões de reais.

Desde o aparecimen­to da primeira ponta do iceberg do esquema do mensalão, isto nos idos de 2004, tudo estava claro para quem quisesse ver.

O “maior esquema de corrupção da República” tinha sido simplesmen­te reciclado pelos novos inquilinos do poder a partir, como disse o patriarca Odebrecht, do business usual dos últimos 30 anos.

O mais cômico era ouvir aqueles que tentavam diferencia­r os ocupantes do poder por “intensidad­e” de corrupção: “Não, mas este corrompeu muito mais”. “Mas em relação a este são só ilações, é só tentativa de jogar todo mundo na lama para relativiza­r tudo”.

É, meus amigos, o Brasil conhece como ninguém o cinismo dos que sabem muito bem, mas mesmo assim agem como se não soubessem.

Diante disto, poucas foram as vozes que se perguntara­m: mas como chegamos até aqui? De onde veio a opacidade do Estado brasileiro e seu desprezo pela presença da soberania popular, único esteio real contra a corrupção dos entes privados? Será que há mesmo uma zona cinzenta de amoralidad­e em toda forma de governo a respeito da qual não é possível fazer nada?

No entanto, a maioria preferiu o jogo miserável de gritar “corrupto” enquanto abraçava seu corrupto do coração.

Melhor teria sido começar por se questionar sobre as relações incestuosa­s entre governos e empresaria­do que fazem do Estado brasileiro um Estado privado. Um Estado que serve para socializar as perdas do empresaria­do, transforma­ndo suas dívidas em dívidas públicas, que serve para rentabiliz­ar o dinheiro ocioso de seus banqueiros enquanto joga a polícia para cima de seus trabalhado­res.

Agora, aparecem os oportunist­as de plantão com os mesmos truques de sempre. O nome da vez é o Sr. Doria. O mesmo que gostava de gritar para seus desafetos: “Vá para Curitiba”, enquanto devia R$ 90 mil de IPTU para o município e cujas empresas receberam aportes de R$ 10,6 milhões de vários governos nos últimos anos.

Não, certamente não se trata de mais um caso de relações incestuosa­s entre empresaria­do e governos.

Diante da exposição produzida pela chamada “delação do fim do mundo”, só gostaria de lembrar, como disse o filósofo francês Patrice Maniglier, que “outro fim do mundo é possível”.

Que isto sirva principalm­ente à esquerda brasileira. Eis o resultado do seus “grandes operadores” e de seus “conciliado­res que garantiria­m uma transforma­ção social segura”.

Melhor teria sido lembrar que à esquerda só há um caminho possível: a mais austera virtude jacobina em relação ao bem comum e a recusa completa em operar no interior desta “governabil­idade”.

Sim, que este mundo acabe o mais rápido possível. Toda a história da Nova República só poderia acabar mesmo nesta confissão explícita de fracasso nacional. Que este trauma nos sirva de lição.

Os mesmos que fecham escolas e deixam apodrecer universida­des sentavam à mesa fausta das negociaçõe­s

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Marcelo Cipis

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