Folha de S.Paulo

França e Brasil, o mal-estar e o voto

- CLÓVIS ROSSI

TORNOU-SE LUGAR comum tratar as delações da Odebrecht como uma espécie de aviso do fim do mundo.

É curioso que Roger Cohen, notável colunista do “New York Times”, tenha usado expressão bem parecida para descrever o ambiente na França nesta reta final das eleições de domingo (23).

Para Cohen, o que há na França é a “melancolia do fim dos tempos”. Como ele foi correspond­ente no Brasil, fala português quase sem acento, de repente roubou a expressão do ambiente que se respira no Brasil.

A coincidênc­ia obriga a investigar um pouco a influência que esse mal-estar exerce sobre as intenções de voto.

Claro que, entre França e Brasil, há um abismo imenso em todos os aspectos. Para começar, na França, assinala Cohen, “resmungar se tornou um modo de vida, uma resposta à ‘grandeur’ perdida”.

Os brasileiro­s, ao contrário, sempre foram conhecidos pelo seu otimismo e, além disso, nunca tiveram “grandeur” para que pudessem perdê-la e resmungar em decorrênci­a.

Mas, partindo de pontos diferentes, ambas as sociedades chegaram a este 2017 a uma mesma situação de irritação profunda com os seus respectivo­s mundos políticos.

Basta lembrar que os presidente­s François Hollande e Michel Temer têm níveis de popularida­de muito próximos —e muito baixos.

O mau humor francês está desaguando em uma talvez inédita situação de dispersão do voto. A mais recente pesquisa, publicada na edição do “Monde” com data de sábado (15), mostra um empate técnico entre quatro candidatos: Marine Le Pen (extrema-direita, 22%); Emmanuel Macron (centro, também 22%); Jean-Luc Mélenchon (esquerda, 20%); e François Fillon (direita, 19%).

Outra pesquisa, do instituto Odoxa, informa que 34% dos eleitores não estão seguros do voto. Hesitam mais os votantes potenciais da esquerda e do centro, ao passo que 87% da turma que vota em Le Pen está firmemente decidida, porcentage­m que cai um pouco no caso de Fillon (para 80%).

Se os hesitantes mudarem seus votos e a mudança for na direção da direita, poderia ocorrer um segundo turno entre a direita e a extrema-direita, cenário estapafúrd­io e inimagináv­el até dias atrás.

Pode acontecer também um outro cenário inédito, que seria a disputa final entre a extrema-direita e a esquerda (Mélenchon), a meu juízo mal definido como de extrema-esquerda. Ele é de esquerda, sim, mas não o considero um extremista, como uma agrupação que não tem pudor em se chamar “Novo Partido Anticapita­lista” (seu candidato é Phillipe Poutou, 2%).

Se o mal-estar é parecido, cá como lá, mesmo ressalvado o abismo entre França e Brasil, como seria seu efeito sobre o voto em 2018 aqui?

É razoável supor que haveria, primeiro, idêntica dispersão e, segundo, o fortalecim­ento da extremadir­eita, como já se nota pelos 10% que as pesquisas atribuem a Jair Bolsonaro.

Mais que isso, não dá para avançar porque o mundo político está suspenso no abismo que dificilmen­te será superado até a votação. Seja como for, vale a pena prestar atenção nos resultados da França, essa nossa parceira na “malaise”. crossi@uol.com.br

As sociedades chegaram a uma mesma situação de irritação profunda com os seus mundos políticos

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