Em busca da utopia latina
Esse presente contínuo e sem localização geográfica exata reforça um encadeamento vago próprio da memória e a sensação de eterno retorno —desta vez, como predisse Marx, como farsa.
A partir da matriz literária, a encenação incorpora outros signos, como a árvore à qual foi preso “o primeiro da estirpe” Buendía, único elemento fixo no palco, que deixa rastro visual semelhante a “Esperando Godot”. Também há uma alusão ao mito de Sísifo, na imagem de um grande novelo carregado de um lado a outro do cenário, sem propósito claro ou sentido alcançável. Entretanto, as referências mais fortes vêm de um teatro popular de plasticidade dominantemente mambembe e burlesca. ERUDITO E POPULAR Essa conciliação entre erudito e popular está na raiz do grupo dirigido por Marco Antônio Rodrigues, que articula os dois segmentos para compor um teatro politicamente engajado contra a mercantilização da vida (e da arte).
Ao se apropriar da Macondo de García Marquez, o que a trupe faz é mostrar o quanto as derivas lógicas, os contrassensos que parecem ritmar o dia a dia do continente latino-americano não são circunstanciais, intermitentes, mas sim elementos estruturais das sociedades aninhadas nessa região.
A suposta irracionalidade (ou passionalidade) latina, mal vista na comparação com o modelo de racionalidade europeia, é celebrada na dramaturgia de Sérgio Roveri, que institui, ao menos naquele perímetro ficcional, a lógica da “cumbia”. O contagiante ritmo popular da Colômbia, que mistura influências africanas, indígenas e espanholas, abre e conclui o espetáculo, como a simbolizar a última força que resta àquele povo na luta por seus direitos.
A encenação é pontuada por analogias com a conjuntura sociopolítica latina (entram em cena, por exemplo, o coronelismo e a esperança na força coletiva popular), convidando o espectador a efetuar suas próprias operações metafóricas.
Esses paralelos constituem um emaranhado de fios soltos, um caos farsesco de que a direção se vale para denunciar o ridículo de uma sociedade que não se pode levar a sério, dado que é marcada por vulgaridade e infantilização.
Se, como é sugerido em cena, o ritmo que se dança até cansar o corpo é o mesmo que pode impelir à ação, há que considerar, de forma análoga, as manifestações culturais (como o teatro) por sua potência de despertar os homens ou de lhes servir de sonífero —quando contribuem para o embrutecimento da sensibilidade.
As duas possibilidades (a do estímulo à ação e a do entorpecimento pela arte) duelam no palco de “Solidão”, onde a insistência na atualidade da utopia mostra sua fragilidade.
Quando se brada que “nenhuma arma ou força poderá derrotar um povo que decide lutar por seus direitos”, por exemplo, oculta-se quão complexo é alcançar um consenso a respeito do que sejam tais direitos e de como obtê-los.