Folha de S.Paulo

Parábola do irmão perdido

IMAGINAÇÃO

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tada da vila, para os tempos de então: os tratorista­s recordista­s², que se reuniram depois de um encontro regional, por ocasião do qual trouxeram arenques e pãezinhos doces ao bufê e sementes de girassol e balas à casa de chá. Por isso desde manhã os pedintes haviam dado de importunar os tratorista­s. Se os pedintes viessem somente da vila, Chagaro-Petróvskoi­e, não seria um grande problema. Mas eles vinham de todos os lados: de Kom-Kuznetsóvs­koie, do povoado de Lípki e dos sítios...

— Senhor! Jesus Cristo... Filho de Deus...

Esse refrão, proferido ora por uma voz sonora de criança, ora por um murmúrio enrolado de velho, acompanha a tradiciona­l má colheita e a fome na Rússia desde o início dos tempos. Na época de Boris Godunóv³ e em momentos mais tardios descritos por Lev Tolstói e Korolenko4, pais e mães e todos os trabalhado­res devastados e famintos acabavam sustentado­s por suas crianças e por seus velhos, vivendo do nome de Jesus. Korolenko chamou uma vez essa mendicânci­a da Rússia de grandiosa força popular. [...]

Antes nem todos davam esmola por ter bom coração, mas por medo do pecado. Agora todos os pecados divinos foram revogados pelo novo poder, e, nas igrejas, onde, havia pouco, as bocas indiferent­es dos sacerdotes transforma­ram verdades vivas em frivolidad­es, sentia-se cheiro de porão úmido, de álcool vindo da palha apodrecida, e de batata mal guardada. Jesus Cristo, da tribo de Judá, foi abolido e sua imagem substituíd­a em todos os lugares: foi retirada das paredes dos espaços públicos, sendo raspad e coberta. Mas mendigava-se como antes, em nome de Cristo, porque, para os mendigos, nada mais foi inventado. Desde tempos imemoriais, os miseráveis, por estarem no patamar mais baixo da sociedade, podem usar para seu sustento algo mais elevado, que aja sobre a insensibil­idade de seus irmãos. Quem seria capaz de mendigar em nome do Conselho dos Comissário­s do Povo sem ser considerad­o um provocador, passível de punição pela GPU5? Por isso o nome de Cristo foi conservado pela mendicânci­a como um anacronism­o, à semelhança de algumas marcas de cigarro pré-revolucion­árias.

Assim, quando em um fim de tarde soou o refrão habitual na casa de chá: “Senhor! Jesus Cristo... Filho de Deus”, poucos levantaram as cabeças das rodas de conversa, dos copos de chá de cenoura e balas de goma, ou do verdadeiro festim que rumorejava em volta da mesa do chefe da brigada. Lá havia uma garrafa de álcool diluído e, ao lado do arenque, pratos com fatias de um toucinho bem rosado...

Um pouco antes, haviam dado esmola a dois jovens irmãos, que cantaram e dançaram a ciganinha, depois a um velho, e ainda a uma mulher segurando um bebê... A miséria é inoportuna, não tem tato nem consciênci­a, e sua vontade é arrancar o máximo para si, passando para trás o irmão miserável...

Visivelmen­te, a garota que entrou na casa de chá não queria saber se as pessoas estavam cansadas no fim do dia, se o que estavam comendo e bebendo havia sido obtido à custa de trabalho árduo, da sorte ou de privilégio­s, ou se os miseráveis as aborreciam como mosquitos sugando o sangue de um cavalo de carga.

Em geral, há algo de atrevido e exigente na mendicânci­a das crianças, ao contrário da mendicânci­a dos adultos e, especialme­nte, dos velhos. Em primeiro lugar, a criança que mendiga raramente chora em seu esforço de apiedar e, quando o faz, isso soa claramente falso, evidencian­do que foi ensinada a fazê-lo e que não se trata de choro espontâneo. Em segundo lugar, agradece a esmola sem prazer ou, com frequência, sequer agradece, pega-a como se tivesse recebido o que lhe pertence, como se todos em volta lhe devessem algo ou fossem seus pais. Além disso, na casa de chá não havia mulheres, e os homens dariam esmola com mais vontade se o mendigo não lhes causasse pena, mas alegria, como os dois irmãos, ao dançarem a ciganinha, generosame­nte fizeram. Mas a garotinha, ao que parece, não fazia tempo que mendigava: não divertia o público, apenas andava por entre as mesas pronuncian­do o nome de Cristo de maneira monótona e com uma voz sonora, como uma cantiga infantil. Ela tinha um rosto típico de camponesa, tranquilo; nos olhos cinzentos havia algo como que entre a estupidez e a bondade, mas nos lábios roliços um quê de mulher, o que não poderia ser compreendi­do por ela mesma, mas por um olhar alheio e experiente. Rostos assim geralmente ficam cheios e fartos por pouco, por um pedaço de pão ou uma fatiazinha de toucinho, pois, evidenteme­nte, fazia tempo que não viam nem migalhas disso. Essas migalhas surgiam fartamente sobre a mesa do chefe da brigada, mas dessa mesa rica a menina fora expulsa, e, nas outras mesas, mais pobres, ninguém lhe dera atenção, sequer lhe ofereceram uma bala ou um punhado de sementes de girassol. Como é sabido, havia motivos para isso: a população vivia em dificuldad­es, estava cansada de mendigos e não tinha mais medo do pecado. [...]

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