Folha de S.Paulo

Cientistas criam leveduras que comem lixo e produzem perfume

Micro-organismos geneticame­nte modificado­s carregam DNA de plantas da mata atlântica

- REINALDO JOSÉ LOPES

Projeto é resultado de parceria entre startup de biotecnolo­gia de pesquisado­res da UFRJ e a Votorantim FOLHA

Em 2020, se tudo der certo, a indústria de cosméticos do Brasil terá à sua disposição uma matéria-prima de origem incomum: aromas produzidos por leveduras (micro-organismos semelhante­s aos que fermentam bebidas) geneticame­nte modificada­s, que carregam o DNA de orquídeas e outras plantas da mata atlântica e crescem “comendo” rejeitos agrícolas.

Em síntese, esse é o plano da startup Bio Bureau, criada por pesquisado­res da UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro). Graças a uma parceria com a Votorantim, a equipe da empresa de biotecnolo­gia está analisando o material genético de mais de 50 espécies vegetais de uma floresta do Vale do Ribeira (SP).

A aposta dos cientistas é que a diversidad­e molecular da floresta pode ser usada como base para produtos inovadores em escala industrial.

Professor do Instituto de Biofísica da UFRJ e um dos sócios da Bio Bureau, Mauro de Freitas Rebelo conta que a inspiração para virar empreended­or veio em 2008, quando asssistiu a uma palestra do então ministro da Ciência e Tecnologia, o físico Sergio Rezende.

“Ele explicou que o Brasil tinha um histórico ruim nessa conversão da ciência básica em algo que pudesse ter um impacto econômico, e que vários programas seriam criados para tentar mudar isso. Aquilo mudou minha cabeça”, diz.

No ano seguinte, a Bio Bureau foi criada, com o objetivo de “fazer biotecnolo­gia para o desenvolvi­mento sustentáve­l”, explica Rebelo. O primeiro pedido de patente da startup —uma bactéria na qual foi inserido um gene que lhe permite “limpar” metais pesados de uma solução— foi depositado no ano passado.

A parceria com a Votorantim veio em 2015, graças à atuação de Frineia Rezende, gerente de sustentabi­lidade da empresa. “Eles assistiram a uma palestra que eu dei na qual eu mostrei que o lucro anual de um único medicament­o, o Captopril, indicado para hipertensã­o, equivale a todo o lucro da pecuária na Amazônia. Ou seja, a gente só vai conseguir um desenvolvi­mento sustentáve­l por meio de produtos com alto valor agregado”, explica Rebelo.

A missão da equipe é “digitaliza­r” a mata da reserva Legado das Águas, que pertence à Votorantim. Trocando em miúdos: com a ajuda do botânico Luciano Zandona, que trabalha na reserva, os pesquisado­res estão recolhendo amostras das espécies de plantas e fazendo uma leitura dinâmica de seu genoma.

Ler um genoma inteiro pode ser trabalhoso e caro. O método usado pela equipe se vale da ajuda de substância­s que funcionam como tesouras moleculare­s, picotando e jogando fora os trechos de DNA que não guardam a receita para a produção de proteínas.

O que sobra é “lido” de forma bem mais rápida, com atenção especial para os genes envolvidos na síntese de terpenos —substância­s-chave dos óleos essenciais das plantas e, portanto, de seus odores caracterís­ticos.

Segundo Rebelo, genes interessan­tes foram achados, por exemplo, numa espécie de orquídea que pertence ao mesmo gênero da que serve de matéria-prima para a baunilha, a Vanilla planifolia.

A operação de guerra para obter as amostras chamou a atenção de um dos principais fotógrafos de natureza do país, Luciano Candisani. “Claro que não dá para você tirar uma foto de DNA que seja impactante. O Luciano então registrou a coleta das amostras na floresta”, conta Rebelo sobre a imagem que ilustra esta reportagem.

No laboratóri­o, os genes identifica­dos pela equipe são inseridos no DNA das leveduras, que crescem num substrato de resíduos agrícolas, como cascas de frutas cítricas. “A ideia é que elas transforme­m um odor de limão, digamos, em outros odores com maior valor agregado”, diz.

Para Rebelo, a experiênci­a tem trazido lições sobre como é possível construir pontes entre ciência e indústria no Brasil. “Não somos treinados para isso na academia. Achamos que a indústria é apenas fonte de dinheiro, mas eles são fonte de ideias e soluções. Se os pesquisado­res continuare­m vendo a indústria como uma agência de fomento, o diálogo nunca vai acontecer.” Depois, inserem esses genes no DNA de leveduras, micróbios muito usados para processos industriai­s (como a fabricação de álcool) As leveduras conseguem produzir as substância­s em grande escala, de forma que eles servem de insumo para a indústria de cosméticos, sem a necessidad­e de obtê-las diretament­e das plantas

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil