Folha de S.Paulo

Podridão global

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As delações liberadas revelam o grau de contaminaç­ão que aflige as relações exteriores do país. Atônito, o cidadão aprendeu sobre a conexão entre política externa e roubalheir­a: operações em terceiros países serviram para gerar, guardar, esconder ou distribuir recursos ilegais, numa história que envolve políticos, empreiteir­as e diplomacia com governos amigos no exterior.

No próximo dia 1º de junho saberemos mais, graças à liberação de informaçõe­s hoje sigilosas. Mas já há evidência suficiente para mapear o problema.

A dobradinha entre Odebrecht e Planalto em Angola, Argentina, Cuba e Venezuela trocou engenharia e influência política por contratos polpudos, financiado­s a crédito subsidiado pelo trabalhado­r brasileiro. Por vezes, o Brasil foi receptor, como se vê com a França, nos casos do submarino nuclear e da hidrelétri­ca de Jirau.

As delações ainda mostram que a “diplomacia das empreiteir­as” não é de hoje, mas herança da ditadura, muito aperfeiçoa­da na democracia. Sabese também que o impacto disso no exterior tem tons de cinza: em Angola, a Odebrecht ajudou a consolidar uma cleptocrac­ia autoritári­a no poder, mas também reconstrui­u um país devastado pela guerra.

A “diplomacia das empreiteir­as” concentrou renda, mas desenvolve­u tecnologia de ponta. E a criação de multinacio­nais brasileira­s é um objetivo a ser preservado.

Graças à Lava Jato, o país poderá começar a limpar a podridão que impregnou parte da política externa. A solução passa, no início, por redobrar os compromiss­os internacio­nais pró-transparên­cia e anticorrup­ção. Por exemplo, quando assinamos um acordo com a OCDE contra a evasão fiscal, larápios foram postos para correr. Quando o MP assinou acordos de cooperação lá fora, ganhou dentes que antes não tinha. É necessário fazer mais. Não porque esses compromiss­os criem sanções estritas (não criam), mas porque abrem espaço para começar a limpeza.

A prioridade é impedir que a política externa fique refém de grupos capazes de comprar acesso privilegia­do. Será uma batalha dura, como acontece em toda democracia capitalist­a desenvolvi­da. Mas precisamos tentar, porque o custo da inação é alto demais.

Qualquer empreitada dessa natureza será criticada pelas viúvas do regime que acobertou a podridão, claro. Tais compromiss­os serão denunciado­s como “antinacion­ais”, em nome da “autonomia” e da “altivez”.

É bom bater de frente contra esse argumento mole. Antinacion­al foi a ladroagem que, enrolada numa bandeira verde-amarela, usou dinheiro público em detrimento do povo brasileiro.

Quando autonomia significa blindagem para a classe política, o resto da sociedade amarga pura dependênci­a. O tempo dessa gente chegou ao fim.

MATIAS SPEKTOR

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