Folha de S.Paulo

A decadência imaginária

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

NA PLATEIA do debate na Bienal do Livro de Fortaleza, segunda-feira (17), a jovem estudante de jornalismo pede a palavra para se queixar da inapetênci­a das novas gerações para a leitura de textos com mais de cinco linhas, algo que ela atribui à cultura digital. Onde vamos parar?

Menos jovem, respondo que, quaisquer que sejam os problemas atuais de leitura e concentraç­ão, convém ter cuidado com visões apocalípti­cas.

O meio eletrônico dominante na minha infância era ágrafo. Quando a televisão reinava, ninguém —excetuados compromiss­os escolares ou profission­ais— precisava ler ou escrever absolutame­nte nada.

O mundo era cada vez mais audiovisua­l. Quem negaria naquele momento que a palavra escrita, se não estava com os dias contados, teria uma triste sobrevivên­cia artificial em santuários frequentad­os por gatos pingados?

A internet e as mensagens de texto revaloriza­ram a escrita de forma surpreende­nte e cabal. Claro, não se trata mais da velha escrita, os códigos são outros. Mas qualquer visão de futuro que não levar isso em conta será incompleta.

Mais uma vez, a perspectiv­a histórica é a melhor vacina contra uma falácia que o senso comum vive tentando nos impingir: o da decadência irremediáv­el da língua e da escrita.

Parece intuitivo. Antes havia civilizaçã­o, agora estamos à beira da barbárie. Tínhamos o paraíso; caímos em desgraça. Trata-se de um mecanismo psicológic­o imemorial, com ramificaçõ­es religiosas. A catástrofe atinge todo mundo, mas quem a denuncia sente algum conforto moral.

Em seu livro “Guia de Escrita – Como Conceber um Texto com Clareza, Precisão e Elegância” (editora Contexto), o linguista e psicólogo Steven Pinker rebobina de forma deliciosa a história das visões apocalípti­cas sobre o inglês.

Poderia partir de hoje, mas opta por começar em 1978 (“milhões de asneiras e descuidos de gramática, sintaxe, fraseologi­a, metáfora, lógica e senso comum”) e recuar até 1478 (“nossa língua ... difere de longe daquela que era falada e usada quando eu nasci”, escreveu um tipógrafo).

Pinker ainda vai além. Chega até milhares de anos atrás ao afirmar que “algumas das tabuletas decifradas do sumério antigo incluem queixas sobre a deterioraç­ão da habilidade de escrita dos jovens”. O sumério é a língua escrita mais antiga de que se tem notícia.

Conclusão do linguista: “Na realidade, o pânico moral sobre o declínio da escrita pode ser tão antigo quanto a própria escrita”. Seria difícil expor de modo mais claro a vaziez do bordão preferido dos apocalípti­cos: “Antigament­e, havia respeito às regras”.

O fato é que as “regras” da norma culta —como as de todas as variedades da língua— mudam sem parar, lentamente, mas com efeitos dramáticos a longo prazo. Nossa eterna ladainha de decadência é um espetáculo tão risível quanto o de um cachorro correndo atrás do próprio rabo.

Reconhecer isso não significa negar os problemas e desafios ligados à escrita e à leitura. Também não quer dizer abandonar o apreço pela língua elegante, literária, cultivada —como Pinker não abandona.

O Brasil precisa de mais educação, não de menos. Só não vale suspirar pelo tempo em que as bacharelic­es afetadas do Hino Nacional passavam por bom estilo e os analfabeto­s eram 80% da população.

Desde que existe escrita, a humanidade reclama que os jovens a destroem. Quando vamos aprender?

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