Folha de S.Paulo

OS OLHOS DA GUERRA

‘Cidade de Fantasmas’, que abre hoje festival É Tudo Verdade em SP, revela intimidade de ativistas contra o Estado Islâmico

- SILAS MARTÍ

Não faltam cenas de decapitaçã­o, crucificaç­ão e bombardeio­s em “Cidade de Fantasmas”. Mas o momento mais forte do filme é a visão de um homem tremendo, tentando fumar um cigarro, enquanto fecha os olhos e mergulha de volta num inferno particular.

Ele é Abdel Aziz al-Hamza, um sírio exilado na Alemanha que lidera uma arriscada operação midiática para revelar ao mundo os horrores praticados pelo Estado Islâmico em Raqqa, cidade sitiada pelo grupo terrorista em seu país.

O documentár­io do americano Matthew Heineman, que abre o festival É Tudo Verdade, em São Paulo, mostra o rosto desse e de outros que se uniram para fazer circular imagens traficadas para fora da redoma de violência imposta por militantes na Síria destroçada pela guerra.

“Eles não queriam se esconder por trás das telas de seus computador­es”, conta Heineman. “Mesmo expostos ao perigo, eles fizeram questão de aparecer, já que isso não tem a ver só com essa luta, mas com um combate a todo tipo de extremismo.”

Heineman, indicado ao Oscar por outro filme sobre outra guerra —a das drogas, na fronteira entre EUA e México— conta que também no caso da Síria era importante dar cara aos personagen­s, indo além da secura das estatístic­as.

Essa estratégia, aliás, aumenta a tensão que transborda de cada minuto do filme. Se muitos documentár­ios terminam com letras na tela explicando o destino dos retratados, a ansiedade em “Cidade de Fantasmas” é saber que fim levaram esses homens — humanos demais diante da lente—, ainda à frente do combate ao terrorismo.

“Uma parte dessa história passou a ser sobre o trauma que eles carregam”, diz o cineasta. “Era tentar ver por baixo dessa armadura que criaram em torno deles mesmos.”

Heineman, de fato, constrói um retrato da intimidade de seus heróis. Flagra momentos de angústia corrosiva, quando mostra, por exemplo, dois irmãos ativistas vendo imagens da execução do próprio pai, um vídeo enviado por lideranças do Estado Islâmico.

Outro ponto forte do documentár­io, aliás, está na precisão com que disseca as estratégia­s visuais dos dois lados do conflito. Enquanto os ativistas de Raqqa tentam vazar para o mundo imagens cruas da realidade sob o terror, combatente­s do EI se apropriam de táticas de Hollywood para atrair rebeldes à sua causa.

No esforço de propaganda do chamado califado, filmes retratam a cidade sitiada por eles como espécie de paraíso muçulmano e glorificam conflitos armados com a mesma visão frenética dos videogames. Mais chocantes, as imagens de como recrutam crianças para a luta armada mostram meninos brandindo metralhado­ras e decapitand­o ursinhos de pelúcia com facões.

Esse mergulho do filme na estética hoje conhecida como “jihadi cool”, no fundo, joga luz sobre a guerra de informação, para além do sangue derramado, que marca um planeta refém do terrorismo. QUANDO abertura hoje, com sessão para convidados de “Cidade de Fantasmas” às 21h, no Cinearte; festival segue no Rio e em São Paulo até 30/4; programaçã­o em etudoverda­de.com.br QUANTO entrada franca

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Raqqa, na Síria, em cena de ‘Cidade de Fantasmas’

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