Folha de S.Paulo

Uma certa ideia da França

- DEMÉTRIO MAGNOLI

NA MADRUGADA da vitória de Trump, Florian Philippot telefonou a Marine Le Pen, celebrando a notícia. “Hoje, os EUA; amanhã, a França”, rejubilou-se. Horas depois, entrou num carro que o esperava para levá-lo de Paris a Colombey-lesDeux-Églises, a cidadezinh­a do autoexílio político de Charles de Gaulle entre 1946 e 1958. Em Colombey, o novo ideólogo da Frente Nacional (FN), 35 anos, gay, depositou uma coroa de flores sobre o túmulo do general. O evento não é banal. O neonaciona­lismo antiglobal­ização percorre caminhos inesperado­s, deitando raízes no solo fertilizad­o pelo material decomposto de antigos movimentos políticos.

De Gaulle acalentava “uma certa ideia da França”: a nostalgia da glória e do poder da estrela mais brilhante do Ocidente. Na epopeia da Resistênci­a, o gaullismo tornou-se idêntico ao nacionalis­mo francês. O general, antifascis­ta e antigermân­ico (“gosto tanto da Alemanha que prefiro muitas Alemanhas”, ironizou no imediato pós-guerra), sonhava com um “renascimen­to da Europa” fundado num “acordo sincero” entre França e Grã-Bretanha. Pelo acordo, as duas potências perfilaria­m juntas na defesa de seus impérios —e a “Europa das pátrias” ressurgiri­a na órbita geopolític­a de uma França avessa à influência soviética. A ascensão da FN é um fruto tardio da dissolução do sonho gaullista.

A história pregou peças sucessivas em De Gaulle. Os impérios coloniais evaporaram. O “renascimen­to da Europa” apoiou-se numa aliança da França com a Alemanha. No lugar da “Europa das pátrias”, emergiu o projeto supranacio­nal que hoje se chama União Europeia. Os gaullistas, agrupados na RPR e, depois, no atual partido Os Republican­os, adaptaram-se ao internacio­nalismo europeísta —ou seja, ao conceito de soberania compartilh­ada, que atingiu um clímax com a união monetária. O Philippot que peregrina a Colombey almeja restaurar, ao redor da FN, o nacionalis­mo gaullista original.

O moderno nacionalis­mo francês é anterior a De Gaulle. Suas raízes encontram-se em 1899, na acre polêmica do caso Dreyfus, quando monarquist­as católicos organizara­mse na Action Française para exigir a condenação do oficial militar judeu Alfred Dreyfus, acusado de traição à pátria num processo envenenado pelo antissemit­ismo. No entre-guerras, o movimento deslizou rumo ao fascismo e, na hora da ocupação alemã, ofereceu apoio ao regime colaboraci­onista de Vichy. A FN herdou a tradição da Action Française.

Fundado em 1972 por Jean-Marie Le Pen, um veterano das guerras coloniais e um saudosista de Vichy, o partido reuniu ex-colaboraci­onistas, tradiciona­listas católicos e fanáticos antissemit­as. Contudo, desde 2011, com a ascensão de Marine, filha do fundador, o partido ultranacio­nalista experiment­a uma reinvenção ideológica de fundo.

Jean-Marie foi expulso da FN em 2015. Três anos antes, Philippot assumira a vice-presidênci­a do partido e a função de principal estrategis­ta de Marine. Certa vez, Jean-Marie definiu a homossexua­lidade como “anomalia biológica e social”.

Philippot, pelo contrário, reagiu a artigos extremista­s que o classifica­vam como líder de um “lobby gay na FN” denunciand­o os “determinis­mos” da “extrema direita” e estabelece­ndo paralelos com os alarmes contra o “lobby judeu” tão caracterís­ticos dos anos 1930. O seu partido é nativista, antiameric­ano, anti-União Europeia, xenófobo e islamofóbi­co —mas não antissemit­a ou homofóbico.

A análise política convencion­al assegura que a FN mudou sua máscara, conservand­o sua alma. O equívoco minimiza o perigo representa­do pelo partido de Marine. A candidata presidenci­al francesa, favorita de Putin e Trump, empenha-se em recuperar o estandarte nacionalis­ta enterrado junto com De Gaulle no cemitério de Colombey. Por isso, é um risco à União Europeia muito maior que as correntes periférica­s de nostálgico­s do marechal Pétain.

A ascensão da Frente Nacional é um fruto tardio da dissolução do sonho nacionalis­ta de De Gaulle

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil