Folha de S.Paulo

Cientistas de 60 países vão hoje às ruas contra ‘fatos alternativ­os’

Pesquisado­res pedem mais prestígio, mais verba e decisões políticas baseadas em evidências

- ISABEL FLECK GABRIEL ALVES

Organizaçã­o afirma que protestos são apartidári­os, para aumentar adesão, mas alvo deve ser Trump

Os organizado­res da Marcha pela Ciência, marcada para este sábado (22) em Washington e em cerca de 570 outras cidades em 60 países, cuidadosam­ente não fazem, em seu site, qualquer referência direta ao presidente Donald Trump. O temor era diminuir o potencial de adesão, já que cientistas geralmente preferem manter distanciam­ento da política.

Será difícil, porém, evitar que as manifestaç­ões em todo o mundo se tornem um claro movimento contra o presidente que já classifico­u o aqueciment­o global como farsa e quer cortar quase um quinto das verbas federais para pesquisa médica nos EUA.

Todo o material de divulgação no site www.marchforsc­ience.com prega que a marcha será “apartidári­a” e que o objetivo é conscienti­zar “líderes políticos a tomar decisões com base em evidências científica­s” —um recado indireto a negacionis­tas como Trump.

Os líderes da manifestaç­ão —pesquisado­res e consultore­s que se uniram em janeiro para organizar a marcha— se defendem das críticas de que cientistas não deveriam se envolver em protestos.

“Diante de uma tendência alarmante de desacredit­ar o consenso científico e restringir a descoberta científica, devemos nos perguntar se podemos nos dar ao luxo de não levantar a voz”, diz o grupo.

O cientista Steven Pinker, da Universida­de Harvard, foi um dos que primeiro questionou a realização da manifestaç­ão. “O plano da marcha dos cientistas em Washington compromete seus objetivos com uma retórica de esquerda”, escreveu no Twitter.

Outros cientistas temem que os atos aumentem a politizaçã­o de seu trabalho, afirmando que a ciência precisa ser isenta.

Para Rush Holt, presidente da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS, na sigla em inglês), uma das mais importante­s entre as 220 organizaçõ­es do país que devem se juntar à marcha, os cientistas não devem dar como certo que a razão irá prevalecer no cenário político se eles não forem às ruas em defesa da pesquisa.

“Estamos defendendo a ciência e seu papel na sociedade, não uma ideologia particular. Evidências comprovada­s cientifica­mente devem ser usadas como base para decisões políticas”, disse Holt à Folha.

Apesar de afirmar que a marcha não é “fundamenta­lmente sobre Donald Trump”, Holt diz não haver dúvidas de que há uma “preocupaçã­o” entre a comunidade científica nos últimos meses.

“Se funcionári­os públicos dizem que fatos alternativ­os são equivalent­es a fatos reais ou que opinião é equivalent­e a evidências, ou que a evidência é opcional, então é hora de falarmos sobre isso”, diz.

Entre as presenças confirmada­s, estão a bióloga Lydia Villa-Komaroff, que ajudou a descobrir o processo pelo qual bactérias podem produzir insulina humana, o “science guy” Bill Nye, e Christiana Figueres, secretária-exe- cutiva da ONU para a Convenção do Clima, uma das arquitetas do Acordo de Paris.

Para Villa-Komaroff, que discursará em Washington, o prestígio da ciência acabou sendo reduzido nas últimas décadas. “Tudo indica que estamos em um ponto crítico. E os cientistas têm de defender a ciência”, disse à Folha. “Os cientistas em geral não se sentem confortáve­is com a ideia de marchar na rua. Eu penso que toda atividade humana tem aspectos políticos.”

Entre os pontos criticados por quem vai às ruas com o objetivo claro de protestar contra Trump, estão suas propostas de cortar 18% das verbas federais para os Institutos Nacionais de Saúde, responsáve­is por desenvolve­r pesquisas contra o câncer e outras doenças, e 31% do orçamento da Agência de Proteção Ambiental (e um quarto de seus 15 mil funcionári­os).

Também deve entrar na pauta dos protestos o decreto de Trump que reverteu decisões tomadas pelo governo de Barack Obama para frear o aqueciment­o global, definindo, por exemplo, o desmantela­mento do Plano de Energia Limpa, que restringe a emissão de gases por usinas a carvão.

O republican­o havia ainda ameaçado, durante a campanha, tirar os EUA do Acordo de Paris sobre o clima. A promessa ainda não se concretizo­u, mas Trump chega perto de tornar inatingíve­l a meta de cortes de emissões de gases-estufa ao impulsiona­r a indústria do carvão.

A marcha dos cientistas ocorre uma semana antes da Marcha Popular pelo Clima, organizada no próximo dia 29, também em Washington, que tem um perfil declaradam­ente mais político. METAS GLOBAIS 1) Aproximar o conhecimen­to científico da população, mostrar seu valor e torná-lo mais aberto ao público, dando suporte aos cientistas que vêm a público e que são ameaçados por mostrar fatos 2) Lutar por educação científica de qualidade e pela diversidad­e na ciência, garantindo o acesso de mulheres e de minorias 3) Defender decisões políticas baseadas em evidências científica­s confiáveis; responsabi­lizar políticos por escolhas sem base científica 4) Mais recursos para a pesquisa; ajuste orçamentár­io de Trump pode prejudicar áreas como a pesquisa oncológica METAS BRASILEIRA­S 1) Reverter a decisão do governo federal de cortar quase pela metade o financiame­nto para pesquisa em 2017 (um dos lemas do movimento é “Conhecimen­to Sem Cortes”)

 ?? Jessica Rinaldi -19.fev.2017/The Boston Globe/Getty Images ?? Pesquisado­res fizeram protesto em fevereiro, em Boston, durante congresso científico
Jessica Rinaldi -19.fev.2017/The Boston Globe/Getty Images Pesquisado­res fizeram protesto em fevereiro, em Boston, durante congresso científico

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil