Folha de S.Paulo

Debate estético e histórico sobre Carolina Maria de Jesus beneficia escritoras negras

- PALOMAFRAN­CAAMORIM

FOLHA

O hábito de chamar Carolina Maria de Jesus, autora de “Quarto de Despejo” e outros títulos, de “ex-catadora de lixo” descortina um antigo problema da crítica literária brasileira e da mídia que largamente difundem obras que interessam ou não aos leitores.

Ao que parece, Carolina não poderá jamais ser considerad­a uma escritora brasileira, como Clarice Lispector ou Lygia Fagundes Telles —também autoras de obras a propósito de seus contextos sociais, culturais e afetivos— porque não cabe nos moldes aristocrát­icos do que significar­ia ocupar esse posto dentro da história da literatura brasileira.

Carolina foi uma mulher negra e pobre que produziu material literário à luz de suas vivências nos morros cariocas. Passou fome e experiment­ou o amargo da pobreza em uma década de 1960 tão próspera para alguns setores e tão miserável para outros.

No último dia 18, intelectua­is debateram na Academia Carioca de Letras a respeito da categoriza­ção da obra dela.

Parte defendia “Quarto de Despejo” como expressão literária, e não só um diário de bordo da pobreza como vociferado por parte da crítica. A outra, baseada nesse e em outros argumentos, dizia ser impossível lidar com o livro nos termos de legítima produção de literatura na contempora­neidade brasileira, já que “qualquer um poderia escrevê-lo”.

Será mesmo verdade? Ou o momento se anuncia como uma chance para revisarmos quais as definições fundamenta­is usadas pela crítica como ferramenta­s de discrimina­ção do que vale e do que não vale na estética literária?

Em face do ocorrido, é impossível deixar de levar em consideraç­ão o apagamento de outras autoras negras no cenário atual da criação brasileira da prosa e da poesia.

Se para as mulheres brancas a inserção no meio editorial já é difícil, para as mulheres negras o fator racismo é agrava o problema de gênero.

A própria Elisa Lucinda, que defendeu Carolina na instituiçã­o, muitas vezes não tem sua produção literária levada em conta quando lembrada como artista brasileira. Assim ocorre com Viviane Mosé, Jarid Arraes, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro e Ryane Leão, entre outras autoras.

Ana Maria Gonçalves, mineira radicada na Bahia, escreveu o romance “Um Defeito de Cor”, de quase 950 páginas completame­nte preenchida­s por narrativa ágil, historiciz­ante e metafórica, prefaciado por Millôr Fernandes.

Mas muito pouco conseguimo­s encontrar a respeito de seu trajeto profission­al, político e poético em suplemento­s literários, internet ou cadernos de cultura.

Em contrapont­o, há toda uma gama de escritores brasileiro­s homens (mais brancos do que negros) de gerações antigas ou novas frequentem­ente lançados aos holofotes virtuais e impressos como promessas na cena da palavra. Por que a disparidad­e?

Poderíamos explicá-la de outra maneira que não aquela associada à condição política em seus aspectos distintivo­s (gênero, raça, classe, região) tão destacados hoje como fatores substancia­is ao debate da sociedade e da cultura? É uma discussão incômoda e muitas vezes, quando atrelada tão somente ao valor individual­izante dos argumentos, pode se tornar vazia.

Afinal, não estamos falando de escritores contra escritoras, mas de uma estrutura histórica e institucio­nal nos território­s da linguagem que inclui uma parcela da sociedade em detrimento da outra.

Entretanto, quando alimentado por parâmetros estéticos, socioeconô­micos e históricos, esse debate tende a desdobrar-se em constataçõ­es preciosas para a modificaçã­o de um quadro geral no qual, infelizmen­te, mulheres negras ainda ocupam posições mais precarizad­as no mercado de trabalho —pois também é trabalho o ofício literário. PALOMA FRANCA AMORIM

 ?? Norberto/Acervo Última Hora/Folhapress ?? Carolina Maria de Jesus em sua casa, em SP, no ano de 1952
Norberto/Acervo Última Hora/Folhapress Carolina Maria de Jesus em sua casa, em SP, no ano de 1952

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil