Cultura e censura
Enunciando críticas em tom rude, num ritmo que mescla o rap, o funk, a música de raiz africana e a MPB, as canções da banda Aláfia podem incitar a estranheza, e por mais de um motivo.
Uma letra do grupo, em particular, parece ter soado especialmente provocativa para as autoridades da TV Cultura, a emissora gerida pelo governo paulista.
“Na noite que finca as garra/ SP é fio de navalha/ O pior do ruim/ Doria, Alckmin/ Não encosta em mim, playboy/ Eu sei que tu quer o meu fim”, cantava o vocalista EduardoBrechó,duranteoprograma “Cultura Livre”, transmitido às terças e reprisado aos domingos.
Essetrechode“LiganasdeCem” revelou-se mais certeiro no diagnóstico político do que na concordância gramatical. Por meio de uma edição grosseira, a menção ao governador Geraldo Alckmin e ao prefeito da capital, João Doria, ambos do PSDB, não chegou ao conhecimento do público da atração televisiva.
Em nota oficial, os dirigentes da TV Cultura justificaram a censura afirmando sua preocupação em “não difundir ideias ou fatos que incentivem a polarização”.
Tal cuidado, levado a sério, inviabilizaria boa parte dos programas da emissora —que, se num passado recente deixavam transparecer um viés antitucano, hoje carregam nas tintas do governismo.
Face às reações que a atitude despertou —que foram desde o inconformismo da apresentadora do programaatéaconvocaçãodeMarcos Mendonça, diretor-presidente dafundaçãoquecontrolaaTVCultura, para explicações na Assembleia Legislativa—, o ato censório foi parcialmente revertido.
Os administradores do canal comprometeram-se a reapresentar a música da banda Aláfia integralmente. Antes tarde do que nunca, poderia dizer-se.
Mas o recuo não chega a dissipar a sensação de que, no afã de abafar ecos petistas em sua programação, a Cultura enveredou pelo equívoco oposto.
Ao menos, até agora. Membros do Conselho Curador da emissora, entre os quais seu vice-presidente, JorgedaCunhaLima,anunciaram, em artigo publicado nesta Folha, um “plano estratégico” para estimular a pluralidade e o dissenso.
É um passo positivo; todavia, o tom diplomático da manifestação certamente renunciou a tocar no essencial. A saber, o princípio de que uma emissora sustentada com recursos do contribuinte não pode ser objeto de aparelhamento partidário e da propaganda política.