Folha de S.Paulo

Na França, terror vota na direita

- CLÓVIS ROSSI

O TERRORISMO já votou na eleição francesa deste domingo (23). Usou, em vez de cédulas, um fuzil para matar um policial. A sabedoria convencion­al manda dizer que esse tipo de acontecime­nto leva água para o moinho da direita e da extrema direita.

Pelo menos um especialis­ta concorda com a sabedoria convencion­al: “Tradiciona­lmente, isso [um atentado terrorista] beneficia mais a direita e a extrema direita do que a esquerda”, disse ao “Le Figaro” Bruno Jeanbart, diretor-geral do instituto de pesquisas OpinionWay.

Reforça Cas Mudde, cientista político especialis­ta em populismo, entrevista­do esta semana pelo excelente repórter que é Diogo Bercito: “Sendo um ataque direto do Estado Islâmico, é claramente orientado para influencia­r as eleições presidenci­ais francesas, isto é, para dar gás a Le Pen” [Marine Le Pen, da extrema direita]. Se Le Pen prega o fechamento das fronteiras e adota um discurso antimuçulm­anos como eixo de campanha, quando o terrorista da Champs-Élysées se chama Karim Cheurfi, seu ato só pode beneficiá-la. Não é à toa que o candidato da direita civilizada, François Fillon, logo após o atentado erigiu o combate ao terrorismo como “prioridade absoluta” —até então, a economia era o seu território favorito de campanha.

É claro que é cedo para medir o efeito do mais recente atentado na França sobre a votação, mas qualquer efeito é importante em um pleito em que os quatro principais candidatos têm intenções de voto pouco acima ou pouco abaixo dos 20%.

Qualquer pontinho que se mova em favor ou contra eles pode definir quais os dois que passarão para o segundo turno. Ainda mais que entre 28% e 31% dos eleitores dizem, conforme diferentes pesquisas, que ainda podem mudar o voto.

Mas é importante salientar que não é apenas o terrorismo a ameaça ao ordenament­o liberal que predomina na França e na maior parte do Ocidente. Claro que se trata de um tipo diferente de ameaça, armado e letal (238 pessoas já foram mortas em atentados no país nos últimos dois anos).

O outro tipo de ameaça é político-ideológico: antes do atentado, a eleição era, em parte, uma disputa entre estatistas (Le Pen e Jean-Luc Mélenchon, de esquerda), ambos dispostos a aumentar o contingent­e de funcionári­os, e Emmanuel Macron, liberal, que pretende enxugar a máquina pública.

Havia também (continua havendo, aliás) uma batalha entre o que eu chamaria, para simplifica­r, de “globalismo” versus “localismo”. De certo modo, é a mesma batalha que se deu nos Estados Unidos, liderada por Donald Trump, e no “brexit”.

No caso da eleição francesa, o “globalismo” é representa­do pela participaç­ão na União Europeia (defendida por Macron e criticada por Le Pen e Mélenchon).

Em termos mais acadêmicos, Angelos Chryssogel­os (Royal Institute for Internatio­nal Affairs, mais conhecido como Chatam House) escreve: “A emergência global do populismo é, ela própria, a prova de tensões entre a crescente interconec­tividade de um mundo globalizad­o e a demarcação da democracia em linhas nacionais”.

Atentados ajudam a extrema direita, mas não são o único desafio à ordem liberal hoje dominante

crossi@uol.com.br

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